domingo, 1 de setembro de 2013

As Entidades Beneficentes de Assistência Social e a nova regulamentação do reconhecimento de sua imunidade frente às contribuições para a Seguridade Social

Ana Carolina Silva Barbosa

Advogada, especialista em Direito Tributário pelo CAD

*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 09, em 27/11/2008

O Conselho Nacional de Assistência Social- CNAS possua a atribuição para analisar e conceder às entidade beneficentes de assistência social o Certificado que declara que as entidades cumprem os requisitos legais para serem consideradas imunes à tributação.
Entretanto, com o crescimento do Terceiro Setor e a falta de estrutura do Conselho, a renovação do certificado, que deveria ser feita a cada três anos, se tornou um grande entrave para a atividade das entidades, que muitas vezes eram obrigadas a recorrerem ao Poder Judiciário para protegerem-se de autuações fiscais em razão do não recolhimento de contribuições previdenciárias.

O reconhecimento da impossibilidade de manutenção de tal obrigação para o CNAS veio com a Medida Provisória nº 446, publicada em 10 de novembro de 2008, que além de atribuir a competência para renovação dos certificados aos Ministérios da Saúde, da Educação e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, estabeleceu parâmetros para esta concessão e renovou, de ofício, todos os certificados que estavam pendentes de análise pelo CNAS.

A Medida Provisória trouxe alguns avanços, como o estabelecimento de um prazo para o Ministério competente renovar o certificado (o CNAS não tinha nenhum prazo para tal renovação, que poderia demorar inclusive mais que 3 anos), mas repete alguns equívocos de leis anteriores que tratavam sobre a matéria, constitucionalmente prevista.

Para aprofundarmos um pouco mais no assunto, não se pode deixar de trazer algumas noções sobre a imunidade a que estas entidades fazem jus.

DA IMUNIDADE

Conforme o artigo 195, "caput", da Constituição Federal, o constituinte de 1988, ao estabelecer o financiamento da seguridade social, imputou seu custeio a toda sociedade de forma direta e indireta, e em seu §7º, trouxe uma imunidade para as instituições sem fins lucrativos no que diz respeito ao pagamento das contribuições sociais, com a ressalva de que sejam atendidas as exigências estabelecidas em lei, in verbis:

“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:
 
(...)
 
 §7º - São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.”(sem grifos no original)

Em razão do fato das contribuições serem plenamente compatíveis com o conceito de tributo fornecido pela legislação tributária e, admitindo que sua instituição está prevista no Sistema Tributário Nacional, condicionada, inclusive, à observância de princípios constitucionais tributários, conclui-se pela natureza tributária das contribuições . Assim, incidirá inexoravelmente o regime tributário prescrito na Constituição Federal, como as limitações ao poder de tributar e, especificamente, as imunidades tributárias.

Muito embora o constituinte tenha se valido do termo "isenção", a expressão está empregada no sentido de "imunidade". É que, conforme lecionado por Roque Antonio Carrazza, está-se diante de uma hipótese constitucional de não incidência tributária, sendo que a designação técnica desse fato jurídico é "imunidade".( CARRAZZA, Roque Antonio, Curso de Direito Constitucional Tributário, pg. 724, 18ª edição, Ed. Malheiros Editores, São Paulo, 2002.)

Esse entendimento recebeu o aval do Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do ROMS nº 22.192-9, 1ª Turma, julgado em 28 de novembro de 1995:

"A cláusula inscrita no artigo 195, §7º, da Carta Política – não obstante referir-se impropriamente à isenção de contribuição para a seguridade social – contemplou as entidades beneficentes de assistência social com o favor constitucional da imunidade tributária, desde que preenchidos os requisitos fixados em lei".

O tema ganha importância quando se analisa o texto legal a regulamentar o dispositivo constitucional em apreço. É que, sendo a imunidade uma limitação constitucional ao poder de tributar, embora o §7º do artigo 195 só se refira a "lei" sem qualificá-la como complementar – e o mesmo ocorre quanto ao artigo 150, VI, "c", da Constituição Federal – essa expressão, ao invés de ser entendida como exceção ao princípio geral que se encontra no artigo 146, II ("cabe à lei complementar:... II – regular as limitações constitucionais ao poder de tributar"), deve ser interpretada em conjugação com esse princípio para se exigir lei complementar para o estabelecimento dos requisitos a serem observados pelas entidades que vierem a pleitear o benefício.

Por tratar-se de imunidade, o teor do §7º do artigo 195, da CF revela um limite ao poder de tributar, pois é uma verdadeira impossibilidade jurídica da autoridade executiva, mediante deliberação de índole administrativa, restringir o teor do dispositivo.

O Professor Ives Gandra Martins e Marilene Talarico Martins Rodrigues vêm corroborar o entendimento proferido pelo Supremo Tribunal Federal ao dizer que a referida lei, dita no texto constitucional, só pode ser complementar (nunca ordinária), justamente porque vai regular uma imunidade tributária, que é uma limitação constitucional ao poder de tributar. Como é sabido, as limitações constitucionais ao poder de tributar só podem ser reguladas por meio de lei complementar, nos moldes do artigo 146, II, da Constituição Federal:

“E a expressão ‘atendidos os requisitos de lei’, do texto constitucional, refere-se aos requisitos estabelecidos por lei complementar, no caso o art. 14 do CTN.
 
(...)
 
Tais requisitos e só eles é que estabelecem as notas características das Instituições que a Carta Magna deseja ver livres de contribuições para a seguridade social, não podendo as entidades impositoras de impostos e contribuição previdenciária e o Conselho Nacional de Assistência Social, acrescentarem quaisquer outros requisitos.” (“Imunidade tributária das Instituições de Assistência Social, à Luz da Constituição Federal”, Revista Dialética de Direito Tributário nº 38, pp. 110/111)

A regulamentação indigitada vem no Código Tributário Nacional, especificamente no artigo 14. O entendimento foi adotado pelo Min. Marco Aurélio Melo no voto lançado nos autos da ADIN 2.028-5/DF, que disse ser o artigo 14 do CTN o dispositivo legal hábil a regulamentar o artigo 195, §7º, da Constituição Federal.

Também ao julgar o Mandado de Injunção 420 o Ministro Marco Aurélio entendeu que o Código Tributário Nacional trouxe a regulamentação legal para gozo da imunidade, cuja ementa e trecho de voto destaca-se:

“IMUNIDADE TRIBUTARIA - ENTIDADES VOLTADAS A ASSISTÊNCIA SOCIAL. A norma inserta na alínea "c" do inciso VI do artigo 150 da Carta de 1988 repete o que previa a pretérita - alínea "c" do inciso III do artigo 19. Assim, foi recepcionado o preceito do artigo 14 do Código Tributário Nacional, no que cogita dos requisitos a serem atendidos para o exercício do direito a imunidade.” (DJU de 22/09/94, p. 25.325)
 
“No tocante às instituições de assistência social, a alínea ‘c’ do inciso IV do art. 150 da Carta em vigor repete o contido em idêntica alínea do inciso III do art. 19 da Carta pretérita. Logo, não se pode dizer, a esta altura, de inexistência de lei a inviabilizar o exercício assegurado constitucionalmente. O art. 14 do Código Tributário Nacional consigna os requisitos indispensáveis a que as entidades filantrópicas gozem da imunidade tributária.” (sem grifos no original)

Quer dizer que já está consagrado o entendimento sobre a regulamentação do artigo 195, §7º pelo Código Tributário Nacional, mormente o artigo 14. A conclusão vem do exame do artigo 146, II, da Constituição Federal, que estabelece a competência da lei complementar para regulamentar as limitações ao poder de tributar.

O Código Tributário Nacional dispõe:

“Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do art. 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:
 
I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (Redação implementada pela LC 104, de 10.01.2001);
 
II – aplicarem integralmente no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;
 
III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.
 
§1º Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no §1º do art. 9º, a autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício.
 
§2º Os serviços a que se refere a alínea c do inciso IV do art. 9º são exclusivamente os diretamente relacionados com os objetivos institucionais das entidades de que trata este artigo, previsto nos respectivos estatutos ou atos constitutivos.”
 
Deste modo, os requisitos necessários para que seja usufruído o benefício da imunidade pelas entidades sem fins lucrativos são os previstos no art. 14 do CTN, quais sejam: 1) não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas a qualquer título, 2) aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais; 3) manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.

DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº 446

Sob o ponto de vista do Direito Tributário o primeiro grande equívoco cometido pela Medida Provisório vem já em seu preâmbulo e em seu artigo 1º, quando menciona que as entidades beneficentes de assistência social seriam isentas ao pagamento das contribuições e não imunes, in verbis:

“Art. 1º A certificação das entidades beneficentes de assistência social e a isenção de contribuições para a seguridade social serão concedidas às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, reconhecidas como entidades beneficentes de assistência social com a finalidade de prestação de serviços nas áreas de assistência social, saúde ou educação, e que atendam ao disposto nesta Medida Provisória’.

Pode parecer um mero detalhe mas efetivamente não é. O instituto da isenção é diferente da imunidade constitucionalmente prevista, e como destacado anteriormente, a regulamentação das imunidades só pode ser feita por meio de Lei Complementar.

Dessa forma, qualquer exigência que fuja das já elencadas no artigo 14 d Código Tributário Nacional são questionáveis.

O art. 28 da Medida Provisória estabeleceu quais os requisitos para o reconhecimento da “isenção”:

Art. 28. A entidade beneficente certificada na forma do Capítulo II fará jus à isenção do pagamento das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, desde que atenda, cumulativamente, aos seguintes requisitos:
 
I - seja constituída como pessoa jurídica nos termos do caput do art. 1º;
 
II - não percebam, seus diretores, conselheiros, sócios, instituidores ou benfeitores, remuneração, vantagens ou benefícios, direta ou indiretamente, por qualquer forma ou título, em razão das competências, funções ou atividades que lhes sejam atribuídas pelos respectivos atos constitutivos;
 
III - aplique suas rendas, seus recursos e eventual superávit integralmente no território nacional, na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais;
 
IV - preveja, em seus atos constitutivos, em caso de dissolução ou extinção, a destinação do eventual patrimônio remanescente a entidades sem fins lucrativos congêneres ou a entidades públicas;
 
V - não seja constituída com patrimônio individual ou de sociedade sem caráter beneficente;
 
VI - apresente certidão negativa ou certidão positiva com efeito de negativa de débitos relativos aos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e à dívida ativa da União, certificado de regularidade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS e de regularidade em face do Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal - CADIN;
 
VII - mantenha escrituração contábil regular que registre as receitas e despesas, bem como a aplicação em gratuidade de forma segregada, em consonância com os princípios contábeis geralmente aceitos e as normas emanadas do Conselho Federal de Contabilidade;
 
VIII - não distribua resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob qualquer forma ou pretexto;
 
IX - aplique as subvenções e doações recebidas nas finalidades a que estejam vinculadas;
 
X - conserve em boa ordem, pelo prazo de dez anos, contado da data da emissão, os documentos que comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas, bem como os atos ou operações realizados que venham a modificar sua situação patrimonial;
 
XI - cumpra as obrigações acessórias estabelecidas na legislação tributária; e
 
XII - zele pelo cumprimento de outros requisitos, estabelecidos em lei, relacionados com o funcionamento das entidades a que se refere este artigo.

Da simples leitura do dispositivo verifica-se que alguns dos requisitos já estavam previstos no Código Tributário Nacional e outros, que extrapolam a Lei Complementar, não possuem nenhuma justificativa válida, como por exemplo o previsto no inciso V e VI.

Grande parte dos requisitos já estavam previstos no artigo 55 da Lei nº 8.212/91 e estavam sendo questionados judicialmente.

Portanto, as principais alterações são as seguintes:

1. As entidades que tiverem mais de uma área de atuação e tiverem cuja receita anual superior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais) deverão separar suas atividades criando outras pessoas jurídicas, que deverão ter inscrições diferentes no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas e se submeterem às normas de sua atividade;
 
2. Os requerimentos de concessão da certificação das entidades beneficentes de assistência social serão apreciados pelos seguintes Ministérios: I - da Saúde, quanto às entidades da área de saúde; II - da Educação, quanto às entidades educacionais; e III - do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, quanto às entidades de assistência social;
 
3. O prazo de validade da certificação será fixado em regulamento, observadas as especificidades de cada uma das áreas e o prazo mínimo de um ano e máximo de três anos;
 
4. Será estabelecido praz em regulamento para a análise e liberação pelo Ministério do pedido de renovação de certificado.
 
5. A entidade que atue em mais de uma das áreas especificadas e cuja receita anual seja superior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais) deverá requerer a certificação e sua renovação em cada um dos Ministérios responsáveis pelas respectivas áreas de atuação da entidade;
 
6. Os pedidos de renovação de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social protocolizados, que ainda não tenham sido objeto de julgamento por parte do CNAS até a data de publicação desta Medida Provisória, consideram-se deferidos.
 
7. Os Certificados de Entidade Beneficente de Assistência Social que expirarem no prazo de doze meses contados da publicação desta Medida Provisória ficam prorrogados por doze meses, desde que a entidade mantenha os requisitos exigidos pela legislação vigente à época de sua concessão ou renovação.

A referida Medida Provisória ainda será regulamentada pelos Ministérios, mas desde já há que se destacar que a novel legislação, ao aumentar as restrições ao reconhecimento da imunidade das entidades e transferir a obrigação da análise dos pedidos aos Ministérios não está solucionando o problema já vivenciado pelo Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS.

A medida é paliativa e o ideal seria o investimento em pessoal e formas mais ágeis de análise dos cumprimento das normas pelas entidades, e renovação dos certificados.

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