Ana Carolina Silva Barbosa
Advogada,
especialista em Direito Tributário pelo CAD
*publicado originalmente no
Boletim Jurídico N.º 09, em 27/11/2008
O Conselho Nacional de
Assistência Social- CNAS possua a atribuição para analisar e conceder às
entidade beneficentes de assistência social o Certificado que declara que as
entidades cumprem os requisitos legais para serem consideradas imunes à
tributação.
O reconhecimento da
impossibilidade de manutenção de tal obrigação para o CNAS veio com a Medida
Provisória nº 446, publicada em 10 de novembro de 2008, que além de atribuir a
competência para renovação dos certificados aos Ministérios da Saúde, da
Educação e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, estabeleceu parâmetros
para esta concessão e renovou, de ofício, todos os certificados que estavam
pendentes de análise pelo CNAS.
A Medida Provisória trouxe
alguns avanços, como o estabelecimento de um prazo para o Ministério competente
renovar o certificado (o CNAS não tinha nenhum prazo para tal renovação, que
poderia demorar inclusive mais que 3 anos), mas repete alguns equívocos de leis
anteriores que tratavam sobre a matéria, constitucionalmente prevista.
Para aprofundarmos um
pouco mais no assunto, não se pode deixar de trazer algumas noções sobre a
imunidade a que estas entidades fazem jus.
DA IMUNIDADE
Conforme o artigo 195, "caput",
da Constituição Federal, o constituinte de 1988, ao estabelecer o financiamento
da seguridade social, imputou seu custeio a toda sociedade de forma direta e
indireta, e em seu §7º, trouxe uma imunidade para as instituições sem fins
lucrativos no que diz respeito ao pagamento das contribuições sociais, com a
ressalva de que sejam atendidas as exigências estabelecidas em lei, in verbis:
“Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais:(...)§7º - São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei.”(sem grifos no original)
Em razão do fato das
contribuições serem plenamente compatíveis com o conceito de tributo fornecido
pela legislação tributária e, admitindo que sua instituição está prevista no
Sistema Tributário Nacional, condicionada, inclusive, à observância de
princípios constitucionais tributários, conclui-se pela natureza tributária das
contribuições . Assim, incidirá inexoravelmente o regime tributário prescrito
na Constituição Federal, como as limitações ao poder de tributar e,
especificamente, as imunidades tributárias.
Muito embora o
constituinte tenha se valido do termo "isenção", a expressão está
empregada no sentido de "imunidade". É que, conforme lecionado por
Roque Antonio Carrazza, está-se diante de uma hipótese constitucional de não
incidência tributária, sendo que a designação técnica desse fato jurídico é "imunidade".(
CARRAZZA, Roque Antonio, Curso de Direito Constitucional Tributário, pg. 724,
18ª edição, Ed. Malheiros Editores, São Paulo, 2002.)
Esse entendimento recebeu
o aval do Min. Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, nos autos do ROMS
nº 22.192-9, 1ª Turma, julgado em 28 de novembro de 1995:
"A cláusula inscrita no artigo 195, §7º, da Carta Política – não obstante referir-se impropriamente à isenção de contribuição para a seguridade social – contemplou as entidades beneficentes de assistência social com o favor constitucional da imunidade tributária, desde que preenchidos os requisitos fixados em lei".
O tema ganha importância
quando se analisa o texto legal a regulamentar o dispositivo constitucional em
apreço. É que, sendo a imunidade uma limitação constitucional ao poder de
tributar, embora o §7º do artigo 195 só se refira a "lei" sem
qualificá-la como complementar – e o mesmo ocorre quanto ao artigo 150, VI, "c",
da Constituição Federal – essa expressão, ao invés de ser entendida como
exceção ao princípio geral que se encontra no artigo 146, II ("cabe à lei
complementar:... II – regular as limitações constitucionais ao poder de
tributar"), deve ser interpretada em conjugação com esse princípio para se
exigir lei complementar para o estabelecimento dos requisitos a serem observados
pelas entidades que vierem a pleitear o benefício.
Por tratar-se de
imunidade, o teor do §7º do artigo 195, da CF revela um limite ao poder de
tributar, pois é uma verdadeira impossibilidade jurídica da autoridade
executiva, mediante deliberação de índole administrativa, restringir o teor do
dispositivo.
O Professor Ives Gandra
Martins e Marilene Talarico Martins Rodrigues vêm corroborar o entendimento
proferido pelo Supremo Tribunal Federal ao dizer que a referida lei, dita no
texto constitucional, só pode ser complementar (nunca ordinária), justamente
porque vai regular uma imunidade tributária, que é uma limitação constitucional
ao poder de tributar. Como é sabido, as limitações constitucionais ao poder de
tributar só podem ser reguladas por meio de lei complementar, nos moldes do
artigo 146, II, da Constituição Federal:
“E a expressão ‘atendidos os requisitos de lei’, do texto constitucional, refere-se aos requisitos estabelecidos por lei complementar, no caso o art. 14 do CTN.(...)Tais requisitos e só eles é que estabelecem as notas características das Instituições que a Carta Magna deseja ver livres de contribuições para a seguridade social, não podendo as entidades impositoras de impostos e contribuição previdenciária e o Conselho Nacional de Assistência Social, acrescentarem quaisquer outros requisitos.” (“Imunidade tributária das Instituições de Assistência Social, à Luz da Constituição Federal”, Revista Dialética de Direito Tributário nº 38, pp. 110/111)
A regulamentação
indigitada vem no Código Tributário Nacional, especificamente no artigo 14. O
entendimento foi adotado pelo Min. Marco Aurélio Melo no voto lançado nos autos
da ADIN 2.028-5/DF, que disse ser o artigo 14 do CTN o dispositivo legal hábil
a regulamentar o artigo 195, §7º, da Constituição Federal.
Também ao julgar o Mandado
de Injunção 420 o Ministro Marco Aurélio entendeu que o Código Tributário
Nacional trouxe a regulamentação legal para gozo da imunidade, cuja ementa e
trecho de voto destaca-se:
“IMUNIDADE TRIBUTARIA - ENTIDADES VOLTADAS A ASSISTÊNCIA SOCIAL. A norma inserta na alínea "c" do inciso VI do artigo 150 da Carta de 1988 repete o que previa a pretérita - alínea "c" do inciso III do artigo 19. Assim, foi recepcionado o preceito do artigo 14 do Código Tributário Nacional, no que cogita dos requisitos a serem atendidos para o exercício do direito a imunidade.” (DJU de 22/09/94, p. 25.325)“No tocante às instituições de assistência social, a alínea ‘c’ do inciso IV do art. 150 da Carta em vigor repete o contido em idêntica alínea do inciso III do art. 19 da Carta pretérita. Logo, não se pode dizer, a esta altura, de inexistência de lei a inviabilizar o exercício assegurado constitucionalmente. O art. 14 do Código Tributário Nacional consigna os requisitos indispensáveis a que as entidades filantrópicas gozem da imunidade tributária.” (sem grifos no original)
Quer dizer que já está
consagrado o entendimento sobre a regulamentação do artigo 195, §7º pelo Código
Tributário Nacional, mormente o artigo 14. A conclusão vem do exame do artigo
146, II, da Constituição Federal, que estabelece a competência da lei
complementar para regulamentar as limitações ao poder de tributar.
O Código Tributário
Nacional dispõe:
“Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do art. 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas:I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; (Redação implementada pela LC 104, de 10.01.2001);II – aplicarem integralmente no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais;III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão.§1º Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no §1º do art. 9º, a autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício.§2º Os serviços a que se refere a alínea c do inciso IV do art. 9º são exclusivamente os diretamente relacionados com os objetivos institucionais das entidades de que trata este artigo, previsto nos respectivos estatutos ou atos constitutivos.”
Deste modo, os requisitos
necessários para que seja usufruído o benefício da imunidade pelas entidades
sem fins lucrativos são os previstos no art. 14 do CTN, quais sejam: 1) não
distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas a qualquer
título, 2) aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos
seus objetivos institucionais; 3) manterem escrituração de suas receitas e
despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua
exatidão.
DA MEDIDA PROVISÓRIA Nº
446
Sob o ponto de vista do
Direito Tributário o primeiro grande equívoco cometido pela Medida Provisório
vem já em seu preâmbulo e em seu artigo 1º, quando menciona que as entidades
beneficentes de assistência social seriam isentas ao pagamento das
contribuições e não imunes, in verbis:
“Art. 1º A certificação das entidades beneficentes de assistência social e a isenção de contribuições para a seguridade social serão concedidas às pessoas jurídicas de direito privado, sem fins lucrativos, reconhecidas como entidades beneficentes de assistência social com a finalidade de prestação de serviços nas áreas de assistência social, saúde ou educação, e que atendam ao disposto nesta Medida Provisória’.
Pode parecer um mero
detalhe mas efetivamente não é. O instituto da isenção é diferente da imunidade
constitucionalmente prevista, e como destacado anteriormente, a regulamentação
das imunidades só pode ser feita por meio de Lei Complementar.
Dessa forma, qualquer
exigência que fuja das já elencadas no artigo 14 d Código Tributário Nacional
são questionáveis.
O art. 28 da Medida
Provisória estabeleceu quais os requisitos para o reconhecimento da “isenção”:
Art. 28. A entidade beneficente certificada na forma do Capítulo II fará jus à isenção do pagamento das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, desde que atenda, cumulativamente, aos seguintes requisitos:I - seja constituída como pessoa jurídica nos termos do caput do art. 1º;II - não percebam, seus diretores, conselheiros, sócios, instituidores ou benfeitores, remuneração, vantagens ou benefícios, direta ou indiretamente, por qualquer forma ou título, em razão das competências, funções ou atividades que lhes sejam atribuídas pelos respectivos atos constitutivos;III - aplique suas rendas, seus recursos e eventual superávit integralmente no território nacional, na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais;IV - preveja, em seus atos constitutivos, em caso de dissolução ou extinção, a destinação do eventual patrimônio remanescente a entidades sem fins lucrativos congêneres ou a entidades públicas;V - não seja constituída com patrimônio individual ou de sociedade sem caráter beneficente;VI - apresente certidão negativa ou certidão positiva com efeito de negativa de débitos relativos aos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e à dívida ativa da União, certificado de regularidade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço - FGTS e de regularidade em face do Cadastro Informativo de Créditos não Quitados do Setor Público Federal - CADIN;VII - mantenha escrituração contábil regular que registre as receitas e despesas, bem como a aplicação em gratuidade de forma segregada, em consonância com os princípios contábeis geralmente aceitos e as normas emanadas do Conselho Federal de Contabilidade;VIII - não distribua resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob qualquer forma ou pretexto;IX - aplique as subvenções e doações recebidas nas finalidades a que estejam vinculadas;X - conserve em boa ordem, pelo prazo de dez anos, contado da data da emissão, os documentos que comprovem a origem de suas receitas e a efetivação de suas despesas, bem como os atos ou operações realizados que venham a modificar sua situação patrimonial;XI - cumpra as obrigações acessórias estabelecidas na legislação tributária; eXII - zele pelo cumprimento de outros requisitos, estabelecidos em lei, relacionados com o funcionamento das entidades a que se refere este artigo.
Da simples leitura do
dispositivo verifica-se que alguns dos requisitos já estavam previstos no
Código Tributário Nacional e outros, que extrapolam a Lei Complementar, não possuem
nenhuma justificativa válida, como por exemplo o previsto no inciso V e VI.
Grande parte dos
requisitos já estavam previstos no artigo 55 da Lei nº 8.212/91 e estavam sendo
questionados judicialmente.
Portanto, as principais
alterações são as seguintes:
1. As entidades que tiverem mais de uma área de atuação e tiverem cuja receita anual superior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais) deverão separar suas atividades criando outras pessoas jurídicas, que deverão ter inscrições diferentes no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas e se submeterem às normas de sua atividade;2. Os requerimentos de concessão da certificação das entidades beneficentes de assistência social serão apreciados pelos seguintes Ministérios: I - da Saúde, quanto às entidades da área de saúde; II - da Educação, quanto às entidades educacionais; e III - do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, quanto às entidades de assistência social;3. O prazo de validade da certificação será fixado em regulamento, observadas as especificidades de cada uma das áreas e o prazo mínimo de um ano e máximo de três anos;4. Será estabelecido praz em regulamento para a análise e liberação pelo Ministério do pedido de renovação de certificado.5. A entidade que atue em mais de uma das áreas especificadas e cuja receita anual seja superior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais) deverá requerer a certificação e sua renovação em cada um dos Ministérios responsáveis pelas respectivas áreas de atuação da entidade;6. Os pedidos de renovação de Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social protocolizados, que ainda não tenham sido objeto de julgamento por parte do CNAS até a data de publicação desta Medida Provisória, consideram-se deferidos.7. Os Certificados de Entidade Beneficente de Assistência Social que expirarem no prazo de doze meses contados da publicação desta Medida Provisória ficam prorrogados por doze meses, desde que a entidade mantenha os requisitos exigidos pela legislação vigente à época de sua concessão ou renovação.
A referida Medida
Provisória ainda será regulamentada pelos Ministérios, mas desde já há que se
destacar que a novel legislação, ao aumentar as restrições ao reconhecimento da
imunidade das entidades e transferir a obrigação da análise dos pedidos aos Ministérios
não está solucionando o problema já vivenciado pelo Conselho Nacional de
Assistência Social – CNAS.
A medida é paliativa e o
ideal seria o investimento em pessoal e formas mais ágeis de análise dos
cumprimento das normas pelas entidades, e renovação dos certificados.
Nenhum comentário:
Postar um comentário