sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Os Livros Digitais e o Benefício Constitucional da Imunidade Tributária

OS LIVROS DIGITAIS E O BENEFÍCIO CONSTITUCIONAL DA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA
Gustavo Pires Maia da Silva
Sócio de Homero Costa Advogados

         Uma projeção da PricewaterhouseCoopers estima que em 2018, o lucro das editoras com livros digitais já chegará a ser maior do que o valor arrecadado com a venda de livros impressos. Esse gráfico do NYT (The New York Times) também corrobora com essa ideia, mostrando que a receita das editoras com ebooks está cada vez maior, em especial nos EUA e na Grã-Bretanha. Recentemente, a Amazon trouxe ao Brasil o serviço Kindle Unlimited, que através de uma assinatura de 20 reais mensais dá acesso a uma vasta biblioteca de ebooks. Isso pode ajudar a fomentar ainda mais a leitura, já que o preço do acesso ao conteúdo vai se tornando mais econômico do que a aquisição de livros físicos. (http://www.b9.com.br/53758/negocios/vendas-de-ebooks-deve-ultrapassar-de-livros-impressos-em-2018/)
         O artigo que ora apresento tem como meta evidenciar que o livro digital, popularmente ou tecnicamente conhecido como “e-book”, recebe o benefício constitucional da imunidade tributária tanto quanto os livros, jornais e periódicos convencionais, ou seja, impressos em papel e palpáveis fisicamente, descritos no artigo 150, VI, “d”, da Constituição da República, que em seu Título VI – Da Tributação e do Orçamento, Capítulo I – Do Sistema Tributário Nacional, Seção II – Das Limitações do Poder de Tributar, assim dispõe: Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre: d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.
         O assunto encontra amparo em face do ininterrupto desenvolvimento de novas tecnologias que divulgam conhecimento, ideias, especialmente por meios informáticos, adotado por inúmeras empresas do ramo das ciências tecnológicas.
         Claro é que, atualmente, é cada vez maior o número de veículos de informações que não se restringem ao papel, sendo extremamente comum, no século XXI, a transmissão de conhecimento por livros eletrônicos, ligados à rede mundial de computadores. Fato é que, os livros eletrônicos, estão encontrando obstáculo na seara tributária, o que é contrário ao nosso ordenamento jurídico atual.
         Conforme acima demonstrado, as imunidades tributárias, dentre elas aquela relativas aos livros digitais, encontram-se no Direito Tributário brasileiro como significativas limitações ao poder de tributar.
         A imunidade tributária, portanto, é aquela permissão trazida pela Constituição da República de 1988, por intermédio de norma que trata de competência tributária para determinados fatos, em defesa de princípios que conferem às pessoas um direito público subjetivo de não ser tributada.
         As imunidades tributárias podem ser gerais ou específicas.
         As imunidades tributárias gerais são aquelas previstas no artigo 150, VI, que se dirigem às pessoas políticas e atingem todo e qualquer imposto que recaia sobre o patrimônio, a renda e/ou os serviços das entidades mencionadas, promovendo e protegendo valores constitucionais básicos como a liberdade religiosa e de informação.
         As imunidades tributárias específicas são aquelas restritas a um único tributo e dirigem-se a determinada pessoa política.
         Há ainda a classificação das imunidades tributárias quanto a forma de previsão ou modo de sua incidência, sendo elas subjetivas ou objetivas.
         As imunidades tributárias também podem ser classificadas como subjetivas ou objetivas.
         As imunidades tributárias subjetivas são aquelas que recaem sobre sujeitos, em determinadas situações em que se encontram, sendo atributo de personalidade jurídica de certos entes, que ficam livres de figurarem no pólo passivo de relações obrigacionais tributárias.
         As imunidades tributárias objetivas são aquelas concedidas em razão de determinados fatos, bens ou situações. Recaem sobre as coisas.
            Os livros digitais se enquadram no conceito de imunidade tributária genérica e objetiva.
         Com o claro propósito de incentivar, promover a cultura e garantir a livre manifestação do pensamento e do direito de crítica, a Constituição da República de 1988 tratou na alínea “d”, do inciso VI, do art. 150 da CF, da imunidade relativa aos livros, jornais, periódicos e ao papel destinado à sua impressão. A mencionada imunidade é objetiva, não interessando o conteúdo da publicação. É pertinente lembrar, todavia, que a imunidade tratada no artigo 150, VI, d”, da Carta Magna, não alcança todos os insumos utilizados na impressão de livros, jornais e periódicos, mas tão somente e apenas, aqueles compreendidos no significado da expressão “papel destinado a sua impressão”.
         Em que pese a imunidade sobre o livro ser de natureza objetiva, como declara parte da doutrina, os Tribunais têm entendido no sentido de sua ampliação. O Supremo Tribunal Federal - STF editou a Súmula 657, que afirma: “A imunidade prevista no art. 150, VI, d, da CF abrange os filmes e papéis fotográficos necessários à publicação de jornais e periódicos”.
         Conclui-se, portanto, que a imunidade tributária prevista no artigo 150, VI, “d”, da Constituição da República de 1988, deve ser estendida aos livros digitais, e consequentemente, às pessoas que trabalham com referido produto.



Identificação de Gênero e suas repercussões no Ambiente de Trabalho

IDENTIFICAÇÃO DE GÊNERO E SUAS REPERCUSSÕES NO AMBIENTE DE TRABALHO

    Orlando José de Almeida
         Sócio de Homero Costa Advogados

Daniel de Oliveira Varandas
  Estagiário de Direito em Homero Costa Advogados


Perante a 3ª Vara do Trabalho de Curitiba, foi distribuída uma reclamação trabalhista em face de K.F.B LTDA, multinacional do ramo alimentício, na qual, dentre os pedidos, foi postulada uma reparação por danos morais devido à discriminação (Autos TRT nº 21076-2012-003-09-00-0 RO).
O Autor da ação se identifica com o sexo feminino, apesar de possuir corpo masculino, e, por conseguinte, se travestia de mulher e era tratado por seus colegas de trabalho como se fosse mulher; porém, não se submeteu à cirurgia de mudança de sexo e não há aos autos qualquer comprovação de que o Reclamante pretendia ou pretende fazer a cirurgia.
A empresa Reclamada, sabendo dessa situação, permitiu que o Reclamante utilizasse o vestiário feminino e, com isso, compartilhasse de vasos sanitários e chuveiros com as demais empregadas. Tal situação criou desconforto perante as obreiras que dividiam um ambiente íntimo com um homem.
Com o objetivo de solucionar o mal-estar criado, a Reclamada pediu para que o Reclamante utilizasse o vestiário masculino. O Autor alegou ter sido hostilizado e sofrido diversos constrangimentos.
Esse é o fundamento do pedido de danos morais por discriminação.
Na sequência, foi publicada sentença que julgou improcedente o pedido de reparação por não terem sido demonstrados e comprovados os fatos provocadores de tal dano. O Reclamante interpôs recurso ordinário.
A 1ª Turma do TRT da 9ª Região, vencida a Desembargadora Relatora Neide Alves dos Santos, deu provimento ao recurso considerando discriminatória a atitude da Ré ao determinar que o Autor utilizasse o vestiário masculino, condenando a Reclamada ao pagamento de indenização no valor de R$ 5.000,00.
Esclarecidas as questões processuais, é importante definir o que seriam transexuais e travestis. Segundo definições médicas, transexuais, são aqueles que sentem a necessidade de fazer a cirurgia de mudança de sexo, pois se sentem pertencentes ao outro gênero. Já os travestis, seriam aqueles que se comportam e se vestem como o outro gênero, mas não querem a cirurgia para mudar seu órgão sexual.
Comparando-se a definição de transexual com a situação vivida pelo Reclamante fica evidente não se tratar de um transexual e sim de um travesti.
Pois bem, ao que nos parece, versa a controvérsia sobre a violação, de forma mais acentuada, de um direito coletivo, posicionamento que se ajusta ao da Desembargadora Relatora Neide Alves dos Santos em seu voto.
Mas percebe-se que, no julgamento do Tribunal, houve proteção ao direito individual do cidadão quando se interpreta que houve discriminação, em se tratando da conduta dos demais empregados e, inclusive, da empregadora.
Porém, não restou comprovada a efetiva conduta discriminatória, vez que o Reclamante não colacionou provas nos autos a fim de demonstrar o dano em questão, o que se soma ao fato de que até mesmo requereu a inversão do ônus probandi.
Questiona-se, pois, se o direito individual em questão deveria prevalecer perante o coletivo? Segue trecho do acórdão para ilustrar a indagação.
A situação de a autora ser vista de lingerie perante os empregados do sexo masculino me parece mais desconfortante do que as empregadas do sexo feminino serem vistas de lingerie pela parte autora, que também se vê como mulher.
Para outros, no entanto, o desconforto maior seria das empregadas, do sexo feminino, que teriam que conviver com o Autor, do sexo masculino, de lingerie, no mesmo espaço íntimo.
E o que seria mais danoso ao direito de intimidade? Um homem, mesmo que este se veja como mulher, compartilhando um ambiente íntimo com outros homens ou compartilhando com mulheres esse mesmo ambiente?
Aqueles que frequentam vestiários podem afirmar que é quase impossível a total privacidade individual, mesmo que se diga que os vestiários da empresa permitiam a preservação da intimidade dos indivíduos.
Importante ressaltar que o Reclamante, além de possuir identificação civil masculina, possuía também corpo masculino, diferenciando-lhe, nesse aspecto, das demais empregadas que também frequentavam o vestiário.
Ora, a separação de banheiros e de qualquer outro ambiente íntimo se dá por motivos de preservação da intimidade daqueles de sexo diferente. Não tendo o Autor passado por cirurgia de mudança de sexo, nem sequer tendo se registrado civilmente como membro do sexo feminino, ele é caracteristicamente “homem”, independente de como se enxergue ou como queira ser.
Portanto, é possível concluir que o direito à intimidade a ser tutelado, face ao princípio da proporcionalidade, e resguardado é o daquelas mulheres que se viam obrigadas a compartilhar da sua intimidade com um homem.
Assim, no caso da empresa, o dano pode ser ainda maior, ou seja, as empregadas que se sentiram constrangidas, por dividir tal ambiente com um homem, poderiam também pleitear uma reparação.
Em conclusão, pensamos que, em casos como este, deve ser preservado o direito coletivo, mas o grupo precisa ser bem orientado para não desrespeitar aquele que pensa ou age de forma diversa em relação à maioria.
Ainda a título de exemplo, pode-se imaginar ainda outro cenário. A empresa poderia instituir opções de banheiros/vestiários, criando um que fosse exclusivo para uso dos transexuais e outro para os travestis. Essa iniciativa não poderia ser interpretada, por si só, como ato discriminatório?
Sem dúvidas, a matéria suscita grandes controvérsias e indagações, comportando, portanto, interpretações e opiniões variadas, caso a caso.



A “Caducidade” das Dívidas após o ajuizamento de Ações

A “CADUCIDADE” DAS DÍVIDAS APÓS O AJUIZAMENTO DE AÇÕES


Iury Andreone Pena Souza
Advogado Associado de Homero Costa Advogados

O credor de determinada obrigação dispõe de diversos procedimentos judiciais para, nos casos de resistência do devedor, afastar o estado de inadimplência e satisfazer a sua pretensão, ainda que coercitivamente. Tal assertiva pode ser verificada, especificamente, nos procedimentos de caráter executivo, nos quais se prioriza o interesse do exequente (artigo 612 do revogado CPC/1.973 e artigo 797 do CPC/2.015).
No entanto, o ordenamento jurídico é norteado pelo princípio da segurança jurídica e da proteção da confiança, de modo a se alcançar a pacificação dos conflitos de interesses. Assim, a pretensão do credor deve ser exercida em um determinado período de tempo, sob pena de ser extirpada pela prescrição – perda do direito de continuar cobrando a dívida, tecnicamente intitulada como prescrição intercorrente, capaz de erradicar a pretensão exercida.
Em outras palavras, a ineficácia do direito de agir se consuma no curso da demanda, especificamente na hipótese em que o credor se mantém, injustificadamente, inerte na prática dos atos processuais, ocasionando a paralisação desmotivada do processo, o que não é tolerado pelo ordenamento jurídico.
Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula de nº 150[1], reconhecendo a possibilidade da prescrição da pretensão executória pelo mesmo prazo da ação, gerando a perda do direito de continuar cobrando a dívida, quando decorrido prazo igual ou superior ao prazo que o credor tem, de cobra-la.
O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de decidir que “o reconhecimento da prescrição intercorrente vincula-se não apenas ao  elemento temporal mas também à ocorrência de inércia da parte autora em adotar providências necessárias ao andamento do feito” (AgRg no AREsp 33.751/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 12/12/2014).
Essa Corte Superior, atenta às alterações advindas com a promulgação do novo Código de Processo Civil, em julgamento paradigma, firmou o entendimento de que a prescrição intercorrente ocorre se o exequente permanecer inerte por prazo superior ao de prescrição do direito material vindicado” (REsp 1522092/MS, Rel.  Ministro  PAULO  DE  TARSO  SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/10/2015, DJe 13/10/2015).

De igual modo, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais admite a prescrição intercorrente nos casos em que o próprio titular da pretensão permanece inerte, não realizando ato ou diligência que lhe incumbia durante o processo (TJMG – Apelação Cível 1.0701.01.000450-8/001, Relator (a): Des.(a) Mariângela Meyer, 10ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 24/05/2016, publicação da súmula em 17/06/2016).
A prescrição intercorrente é fenômeno endoprocessual e, por isso mesmo, vinculada a um dado processo. Sua aplicação pode ocorrer em qualquer procedimento, tenha ele função cognitiva ou executiva, já que tem por objetivo proteger a segurança jurídica e a pacificação das relações sociais.
Cumpre ressaltar, no particular, que a Lei de nº 6.830/80, ao tratar sobre a cobrança judicial da dívida ativa da fazenda pública, dispõe especificamente sobre a incidência da prescrição intercorrente. O §4º do artigo 40 da mencionada lei determina que se da decisão que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato”.
No âmbito das relações jurídicas de direito privado, não havia dispositivo legal semelhante, ensejando o surgimento de controvérsia acerca da aplicação da prescrição intercorrente nessa seara. Isto porque, o revogado CPC/1.973 não estabelecia prazo específico para a suspensão da execução, o que ensejava dúvidas sobre a definição do marco inicial da prescrição.
Neste contexto, a Lei nº 13.105 de 2015 (Novo CPC), superando a celeuma instaurada pela omissão legislativa, introduziu novas regras sobre a prescrição intercorrente, aplicáveis a todos os processos de natureza cível.
Conforme regramento ditado pela nova legislação processual, tendo sido suspensa a execução por ausência de bens penhoráveis (inciso III, do artigo 921, do CPC/2.015), o juiz suspenderá a execução pelo prazo de 1 (um) ano, durante o qual se suspenderá a prescrição” (§1º, do artigo 921, do CPC/2.015) e, caso decorrido o mencionado prazo sem manifestação do Exequente, começa a correr o prazo da prescrição intercorrente” (§4º, do artigo 921, do CPC/2.015).
Além disso, conforme evidencia o disposto no §5º do artigo 921 do CPC/2.015, somente quando do reconhecimento judicial da prescrição se faz necessária à oitiva das partes, eliminando a necessidade de prévia intimação do exequente para dar andamento ao feito (v.g. REsp 1522092/MS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/10/2015, DJe 13/10/2015).
Denota-se, portanto, que o CPC/2.015 reconhece expressamente a prescrição intercorrente como uma das causas de extinção da execução, conforme enuncia o inciso V de seu artigo 924.
Logo, o novo Código de Processo Civil inovou o ordenamento jurídico pátrio ao tratar, com detalhes, sobre a prescrição intercorrente e, especialmente, definir o seu marco inicial, nas hipóteses em que houver a suspensão do processo.
Por fim, ainda se faz necessário registrar que, em decorrência do efeito atrativo do artigo 513, do CPC/2.015, o novo regramento processual sobre a prescrição intercorrente também se aplica, de igual modo, à fase de cumprimento de sentença, ante a sua manifesta compatibilidade.




[1] Prescreve a execução no mesmo prazo de prescrição da ação.

Missão (quase) impossível

Missão (quase) impossível


Um dos estagiários foi acionado pelo advogado coordenador da equipe para tentar resolver uma diligência que, até então, nenhum outro colega tinha conseguido cumprir: conseguir convencer a escrivã do Fórum de uma Comarca do Interior de MG a expedir uma Carta Precatória para leiloar um bem penhorado que, há mais de 3 meses, já havia sido determinado pela Juíza daquela Vara. Orientação: “volte ao Escritório apenas com a Precatória em mãos!”. Pois bem. Ao meio dia em ponto, o estagiário estava à porta do fórum; afinal, “quem chega primeiro, bebe água fresca”. Ao ser chamada, a escrivã, da sua própria mesa, respondeu em alto tom: “O que quer?”. O estagiário respondeu: “posso conversar com a senhora um instante?”. “Diga daí”, foi a resposta. Após alguma insistência, o estagiário foi atendido face-a-face. “É o seguinte, preciso que a senhora expeça a Carta Precatória deste processo”. “Ah, claro! Por que não disse antes”. “Expedirei agora”, afirmou a escrivã. Como não poderia ser diferente, o estagiário ficou aguardando. 1h, 2h, 3h, 3h30... 4h se passaram. Nada! Com o pé já doce, pois estava aguardando no balcão e o cotovelo inchado, de repente, o estagiário ouviu lá do fundo da Secretaria: “Quem é esse menino? O que ele quer?”. “Nada não”, disse a escrivã. Esperançoso, embora sem saber quem era aquela boa alma, o estagiário foi em sua direção, mesmo sem ter sido chamado, e disse: “Quero sim, uma Precatória!”. “Como assim?”, foi a resposta da “curiosa”. “A senhora é mesmo a...” “Juíza”, foi a resposta. Após esgotar a concedida oportunidade de ouro ao estagiário, a Juíza chamou a escrivã em sua sala, questionou-lhe o porquê de tamanha demora e, por fim, ordenou: “cumpra meu despacho e entregue ao menino imediatamente”! Com ares de vitória, o estagiário retornou ao balcão. Meia hora se passou e... nada! Quando então a juíza saiu do seu gabinete, bolsa a tira colo, com ares de fim do expediente, passou por detrás do “menino”, deu um educado boa tarde e ouviu: “Excelência, só mais um instante”. “Claro, pois não”. “Sabe o que é, lembra da Precatória, ainda não...”. “Como? Ainda não?”. Antes de ser novamente chamada, a Escrivã levantou rapidamente e disse que o documento já estava quase pronto. “Então vou esperar”, disse a bondosa Juíza, “aproveito e já assino”. Dessa vez, em “apenas” 15 minutos, a Carta Precatória foi devidamente entregue e o estagiário retornou ao Escritório com mais uma missão cumprida. Na verdade, comprida.

O Uso da Internet e os Crimes Cibernéticos

O USO DA INTERNET E OS CRIMES CIBERNÉTICOS

Guilherme Augusto Reis Filho
Estagiário do Departamento Criminal do Homero Costa Advogados


Hassan Magid de Castro Souki
Sócio de Homero Costa Advogados

Ao mesmo passo que a internet sofre modificações diárias, a sociedade passa por uma profunda transformação de suas estruturas, qualificando-se hoje pela imaterialidade e pela ausência dos limites temporais e espaciais tradicionais. Dessa forma, com o surgimento da informática, seus avanços e popularização, é possível afirmar que a sociedade se encontra diante de uma tecnologia revolucionária e que condiciona o seu funcionamento.
O Direito, pela sua forma dinâmica, também tem sofrido diversas mudanças, na tentativa de acompanhar as evoluções tecnológicas e de se adaptar às transformações sociais, adequando-se, de modo gradual, à nova realidade. Isso porque são necessárias novas soluções para os novos problemas que surgem, o que desperta uma demanda por maior atenção para os aspectos jurídicos do uso do computador, dado o grande desenvolvimento da internet.
Não obstante todos os benefícios alcançados, como consequência do uso generalizado dos computadores e do amplo acesso à internet, a evolução tecnológica é acompanhada por um risco potencial, resultante da própria vulnerabilidade do meio informático. Sendo assim, cabe ao Estado, no desempenho do seu papel de regulador e organizador da sociedade, o dever de buscar mecanismos de prevenção e de combate às condutas que transgridam a ordem legal estabelecida. E quanto mais se amplia o uso da informática nas atividades humanas, maior a tendência de que surjam problemas legais, incluindo novas formas de crimes.
Ainda sem a tipificação adequada e com a facilidade de acesso à rede mundial de computadores, os crimes tradicionais previstos em nossa legislação não se mostram suficientes para abranger aqueles cometidos contra o computador ou por meio dele. Em outras palavras, embora ocorra a aplicação do Código Penal para alguns dos crimes cibernéticos, frente ao surgimento de novas modalidades criminosas, se faz necessária uma legislação específica, capaz de englobar com eficiência o maior número possível dessas condutas.
Em que pese ser óbvia a impossibilidade da legislação de acompanhar os avanços desses crimes no mesmo ritmo em que se desenvolvem, é fundamental que se tenha em mente que a falta de normas especificas é um grande empecilho para a persecução e um elemento fomentador da impunidade, já que várias condutas graves continuam sendo atípicas, não podendo ser penalizadas. Ainda assim, é inegável que certas medidas emergenciais têm sido adotadas, como a criação de normas próprias que tipificam algumas das condutas criminosas que ocorrem no meio virtual. Esse é o caso das Leis nº 12.735 e 12.737, ambas de 30 de novembro de 2012, a primeira conhecida popularmente como Lei Azeredo e a segunda como Lei Carolina Dieckmann.
A Lei Azeredo incluiu um novo inciso no art. 20 da Lei nº 7.716/89 (Lei de Combate ao Racismo), estabelecendo a obrigatoriedade da cessação imediata de mensagens com conteúdo racista e o dever de retirada das mesmas de quaisquer meios de comunicação. A Lei Carolina Dieckmann, por sua vez, alterou o Código Penal, tipificando os crimes de invasão de computadores para obtenção vantagem ilícita; falsificação de cartões e de documentos particulares; e interrupção de serviços eletrônicos de utilidade pública. 
Considerando a nocividade e a repulsa social das condutas por elas abrangidas, é preciso reconhecer que alterações no mesmo sentido das então promovidas deveriam ter ocorrido muito antes. Contudo, a promulgação dessas leis revela que nem sempre se faz necessária a intervenção do Direito Penal para a proteção de bens jurídicos, devendo esta ser reservada para as hipóteses de insuficiência dos instrumentos não jurídicos e dos outros setores do ordenamento, como um último recurso, por se tratar de ramo do Direito de natureza essencialmente violenta e sancionatória. Mas as referidas leis, no contexto em que foram promulgadas, demonstram exatamente o oposto.
Tanto é assim que o chamado Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014), norma que disciplina o uso, inclusive ético, da rede mundial de computadores no país, só veio a ser promulgado cerca de dois anos depois da criminalização das condutas praticadas sob o seu espectro. E só no dia 11 de maio do corrente ano, quase quatro anos depois, às vésperas do afastamento provisório da Presidente Dilma Rousseff, é que foi editado o Decreto nº 8.771/2016, também regulamentando o uso da internet. Logo, tudo indica que o legislador decidiu por bem recorrer ao Direito Penal e criminalizar, para só então - muito recente e tardiamente, diga-se de passagem – disciplinar e estabelecer direitos e deveres cibernéticos.
A técnica legislativa utilizada na redação da Lei Carolina Dieckmann, em si mesma, também é problemática, pois a presença de termos como “mecanismo de segurança”, “dispositivo informático” e “titular do dispositivo”, sem as respectivas definições legais, dificulta a sua aplicação.
É importante destacar ainda as dificuldades de identificação do autor ou autores dos crimes cibernéticos, pela indispensabilidade de autorização judicial para a identificação do IP (Internet Protocol) de onde pode ter partido a ação e, depois, pela necessidade da identificação daquele que efetivamente utilizou determinado dispositivo informático para a prática de um delito.
A partir dessa breve análise, é fácil perceber que o mau uso da internet produz sérias consequências e elevados riscos. Por isso e pela importância que assume atualmente, é evidente que o espaço virtual não deve estar alheio a qualquer forma de regulamentação, sobretudo no que se refere aos temas penais. Tendo em vista a vulnerabilidade do meio informático e o dinamismo da nova criminalidade a ele inerente, uma sociedade informada é imprescindível para que se alcance o equilíbrio entre o uso saudável da internet e a segurança, seja na sua dimensão pública ou pessoal, o que só pode ocorrer a partir do debate e da construção de uma política legislativa mais robusta e que melhor responda às necessidades sociais. Como primeiro passo, é necessária legislação própria e, antes disso, um atento exame dos diversos aspectos técnicos que gravitam em torno do assunto, a fim de que se garanta a adequação e a efetividade da lei.