Bernardo José Drumond Gonçalves
Sócio de Homero Costa Advogados e Coordenador do Departamento
Empresarial
O presente artigo trata da
possibilidade de comunicar haveres de participações societárias entre os
companheiros e cônjuges. Esta análise será subdividida em duas etapas: a) a
primeira, vinculada à participação societária que “sofre” valorização pelo
decurso do tempo, ou seja, por fatores alheios à vontade ou esforço dos sócios;
e, logo em seguida, b) uma segunda, afeta à hipótese em que há um
reinvestimento de lucros na sociedade. Em outras palavras, os sócios
capitalizam sua participação, promovendo uma injeção de recursos financeiros
com o próprio resultado auferido de suas quotas ou ações, deixando de usufruir
de tais recursos.
Via de regra, sabe-se que os bens tidos como
“particulares” não se comunicam entre os companheiros e cônjuges. Assim, uma
participação societária adquirida anteriormente à constância da relação ou de
forma gratuita (por herança ou doação), não se comunicam, ressalvada a hipótese
de os companheiros elegerem o regime da comunhão universal de bens,
naturalmente. Logo, a dúvida acerca da comunicabilidade desses haveres se
restringe ao regime da comunhão parcial de bens.
Em princípio, essa constatação não gera
dúvidas. Há, entretanto, uma questão que tem trazido debates. Caso essas cotas
societárias se valorizem no curso do tempo, de forma contemporânea com a união
estável, tais acréscimos alcançariam ou não o patrimônio do companheiro? Em
outras palavras, são passíveis de comunicabilidade?
Para Dimas Messias de Carvalho (apud CARVALHO, 2014, p. 55), essas
participações são “[...] incomunicáveis, privativas, entretanto, pela regra da
acessão empresarial, os acréscimos ingressam no patrimônio comum”. E o autor
explica o porquê do seu raciocínio, aderido por Newton Teixeira Carvalho:
Todo o crescimento da empresa ou
alterações que agregam valor, incluindo aumento do capital, de cotas, mudança
de endereço ou de ramo, abertura de filiais, comunica-se. Os ganhos obtidos na
atividade comercial de um dos cônjuges integram o patrimônio comum. (CARVALHO,
2014, p. 8).
Ou seja, a cota, ainda que
devidamente atualizada, em si, é incomunicável, mas os frutos, por essa linha,
seriam comunicáveis. Esse é o posicionamento do TJRS citado pelo autor:
AÇÃO DECLARATÓRIA DE EXISTÊNCIA E
DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. PARTILHA DE BENS. FILIAL DE EMPRESA CONSTITUÍDA
DURANTE A UNIÃO ESTÁVEL. DIVISÃO DAS QUOTAS SOCIAIS OU DO CRESCIMENTO
PATRIMONIAL. Mesmo que as quotas sociais da empresa constituída, antes da união
estável, sob o regime patrimonial da comunhão parcial de bens, não se submetam
à partilha, o mesmo inocorre com a filial criada durante a relação, devendo ser
dividido o valor equivalente às quotas sociais e o respectivo crescimento
patrimonial. Recurso da autora provido. Apelação do requerido improvida. (RIO
GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. AC n. 70.021.219.589 Relator: Desembargador
Claudir Fidelis Faccenda – 8ª Câmara Civel).
Também por analogia,
pode-se chegar a tal dedução. Nos termos do art. 39 da Lei nº 9.610/1998, “Os
direitos patrimoniais do autor, excetuados os rendimentos resultantes de sua
exploração, não se comunicam, salvo pacto antenupcial em contrário”. (BRASIL.
1998). Logo, em vista dessa regra, percebe-se uma confirmação dessa proposição
de dar tratamento distinto entre o bem particular e os frutos dele advindos.
Essa, contudo, não foi a
compreensão do STJ ao examinar o mesmo assunto. No julgamento do Agravo Interno
em Agravo em Recurso Especial nº 236.955/RS, sob o fundamento de que tal
valorização das cotas se deve a um “fenômeno econômico”, não se podendo
atribuir a um esforço comum dos companheiros. Assim, foi afastada a
comunicabilidade do fruto da valorização das cotas:
AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL. VALORIZAÇÃO DE
COTAS SOCIAIS ADQUIRIDAS PELO CONVIVENTE VARÃO ANTES DA UNIÃO ESTÁVEL. EXCLUSÃO
DA PARTILHA. DECISÃO MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. 1. Segundo o entendimento do
Superior Tribunal de Justiça, a valorização patrimonial das cotas sociais
adquiridas antes do casamento ou da união estável não deve integrar o
patrimônio comum a ser partilhado, por ser decorrência de um fenômeno econômico
que dispensa a comunhão de esforços do casal. 2. Agravo interno não provido.
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgInt no AREsp 236.955/RS. Relator:
Ministro Lázaro Guimarães [Desembargador Convocado do TRF 5ª Região] – Quarta
Turma).
Antes mesmo dessa referida decisão, há um
outro precedente (REsp 1.173.931/RS), de relatoria da lavra do Ministro Paulo
de Tarso Sanseverino, em que foi salientada a ausência do esforço comum
(laboral), porque houve também a atribuição da valorização das cotas a um
fenômeno econômico:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL.
FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. REGIME DE BENS. COMUNHÃO PARCIAL DE BENS. VALORIZAÇÃO
DE COTAS SOCIAIS. 1. O regime de bens aplicável às uniões estáveis é o da comunhão
parcial, comunicando-se, mesmo por presunção, os bens adquiridos pelo esforço
comum dos companheiros. 2. A valorização patrimonial das cotas sociais de
sociedade limitada, adquiridas antes do início do período de convivência,
decorrente de mero fenômeno econômico, e não do esforço comum dos companheiros,
não se comunica. 3. Recurso especial provido. (BRASIL. Superior Tribunal de
Justiça. REsp 1173931/RS. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino –
Terceira Turma).
Neste julgamento, o voto
do Relator destacou que inexistiu qualquer acréscimo ou injeção no patrimônio
capaz de provocar a valorização das cotas, mas simplesmente houve uma “evolução
normal”, que acarretou aumento de valor daquele bem. Por esta razão, não
haveria motivação para se impor a comunicabilidade desse fruto da participação.
Maria Berenice Dias adere
a esse posicionamento, afirmando que se “[...] a valorização das cotas for
decorrência de mero fenômeno econômico e não do esforço comum dos companheiros,
esta não se comunica” (DIAS, 2016, p. 345).
Some-se a esse argumento a
fala do Desembargador Francisco Loureiro, ao julgar Recurso de Apelação nº
0628423-40.2008.8.26.0001 do TJSP, em 25/07/2013, em causa em que se discutiu
exatamente a pretensão de uma companheira para que houvesse a partilha dos
haveres societários de participações particulares do outro companheiro,
valorizados ao longo da relação: “A valorização real de bens próprios não
altera a sua natureza, para convertê-los em bens comuns”. (SÃO PAULO. Tribunal
de Justiça. Recurso de Apelação nº 0628423-40.2008.8.26.0001. Relator:
Desembargador Francisco Loureiro).
Não se pode esquecer que,
se houvesse prejuízo, decerto que a meação seria preservada, na forma do art.
674, §2º, I do CPC/2015, mediante o oferecimento de Embargos de Terceiro. Logo,
por corolário lógico, deve ser deduzida a incomunicabilidade da valorização das
cotas. E ainda que tivesse havido um sobrepreço, essa valorização não
transcende o mesmo bem, além de independer de qualquer contribuição do
companheiro ou cônjuge para que a tanto chegasse.
A par da dialética
exposta, a prova desse esforço incumbirá a quem alegá-lo, consoante art. 373 do
CPC/2015, não cabendo a aplicação de presunção. Analogamente, esse foi o
entendimento do TJMG ao examinar pleito equivalente:
UNIÃO ESTÁVEL. RECONHECIMENTO E
DISSOLUÇÃO. PARTILHA. VALORIZAÇÃO DE BEM IMÓVEL. INDEFERIMENTO. PROVA.A
partilha, em razão da dissolução da união estável, pressupõe a prova da
existência de bens comuns e da aquisição deles ao tempo da convivência do
casal. É improcedente o pedido de partilha, como formulado pelo autor, quando
não se prova, efetivamente, sua contribuição para a valorização do imóvel de
propriedade exclusiva da ré. Nega-se provimento à apelação. (MINAS GERAIS.
Tribunal de Justiça. Apelação Cível 1.0232.06.011586-1/001. Relator:
Desembargador Almeida Melo – 4ª Câmara Cível).
Enquanto uma primeira
corrente caminhou num sentido protetivo do Direito de Família, a favor da
comunicabilidade dos haveres, a segunda corrente, baseada no posicionamento do
STJ, seguiu sentido oposto, pela incomunicabilidade, à luz do Direito
Empresarial, estabelecendo-se a controvérsia, dividindo o entendimento dos
Tribunais pátrios.
Dentre os Tribunais que
enfrentaram a questão, salta aos olhos a divergência do Gaúcho, que se mostra
dividido. Na verdade, ao analisar os seus julgados, verifica-se que após o
julgamento do REsp 1173931/RS pelo STJ, houve um “divisor de águas” naquele
Tribunal Estadual, que passou a adotar, de 2013 em diante, o entendimento do
Tribunal Superior, no sentido de afastar a comunicabilidade dos haveres
societários entre os companheiros.
Em vista dessa divergência
e das razões apresentadas por ambas as correntes, parece-nos mais adequada a
tese de incomunicabilidade dos haveres (frutos) societários, seja porque
derivados de um bem particular, seja porque a valorização, como justificado nos
fundamentos dos acórdãos citados, não se deve a um esforço ou uma dedicação dos
companheiros sócios, mas a um evento independente, um “fenômeno econômico”,
que, por sua vez, poderia ter sido negativo e gerado prejuízos – o que não
implicaria, por si só, responsabilização patrimonial do outro companheiro,
mesmo na hipótese de reduzir a valorização dessas cotas.
Se a hipótese anterior
leva em consideração apenas o fenômeno
econômico, ou seja, a valorização “involuntária” das cotas societárias,
merece ser examinada se o mesmo resultado e discussão há para a possibilidade
de o companheiro, enquanto sócio, reinvestir o lucro que lhe couber na vigência
da união estável.
Em outras palavras,
estrategicamente, ao invés de promover retiradas, o sócio companheiro, com o
propósito de alavancar projetos, melhorar a performance
da empresa ou capitalizar a sociedade empresária, deixa de fazer as retiradas
periódicas dos lucros proporcionais às participações que detém.
No curso do tempo, o
efeito dessa iniciativa pode acabar sendo também de valorização das cotas e,
inequivocamente, essa hipótese é distinta da tratada anteriormente. Resta,
então, saber, se o tratamento legal desta, no que concerne à comunicabilidade
entre os companheiros sofre alguma modificação ou é abordada sob a mesma
perspectiva.
Antes de se adentrar ao punctum saliens, importa trazer o
conceito de lucro, enquadrando-se a discussão. Para Sacha Calmon Navarro Coêlho
(2005, p. 528), mais especificamente, “O lucro nas operações sociais normais é denominado
lucro operacional, formado pela diferença entre a receita bruta operacional e
os valores dela dedutíveis, a saber: custos, despesas operacionais, encargos,
provisões e perdas”.
Ao enfrentar a matéria, em
sede de Recurso Especial (nº 1.595.775/AP), o STJ firmou seu posicionamento. A
Terceira Turma, em unanimidade de votos, acompanhou o Relator, Ministro Ricardo
Villas Bôas Cueva, que entendeu não configurar como fruto esse efeito do
reinvestimento do lucro, no critério do art. 1.660, inciso V do CC/2002:
As quotas ou ações recebidas em
decorrência da capitalização de reservas e lucros constituem produto da
sociedade empresarial e aumentam o seu capital social com o remanejamento dos
valores contábeis da própria empresa, consequência da própria atividade
empresarial. Assim, tal reserva não se caracteriza como fruto, à luz do art.
1660, V, do Código Civil, apto a integrar o rol de bens comunicáveis ante a
dissolução da sociedade familiar. Assim, não havendo redistribuição dos lucros
da sociedade empresária aos sócios, porquanto retidos na empresa para
reinvestimento, não há como reconhecer o alegado acréscimo do patrimônio do
casal, motivo pelo qual não há falar em incidência do art. 1.660, V, do Código
Civil de 2002. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº
1.595.775/AP. Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – Terceira Turma).
Nesse representativo voto,
o Relator ainda destacou que, mesmo que tenha havido recebimento de novas
cotas, decorrentes dessa redistribuição de lucros – o que poderia ser
interpretado como um fato novo –, não se comunicaria a participação societária
entre os companheiros, porquanto são reservas, reforços da sociedade
empresarial e a estas pertencem (e não aos sócios):
As quotas ou ações recebidas em decorrência
da capitalização de reservas e lucros constituem produto da sociedade
empresarial, pois incrementam o capital social com o remanejamento dos valores
contábeis da empresa, em consequência da própria atividade empresarial.
Portanto, não constituem frutos do bem particular do consorte, motivo pela
qual, não integram o rol de bens comunicáveis quando da dissolução da sociedade
familiar. Assim, esse aumento do capital social não constitui fruto do sócio,
mas, sim, produto da sociedade empresarial, que com o sócio não se confunde,
como dito alhures, e, por isso, não se comunica (Sérgio Gischkow Pereira,
Direito de família: aspectos do casamento, sua eficácia, separação, divórcio,
parentesco, filiação, regime de bens, alimentos, bem de família, união estável,
tutela e curatela, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2007. pág. 231).
(BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.595.775/AP.
Relator: Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva – Terceira Turma).
Partindo-se desse ponto,
traçado no julgamento acima, há uma questão, por sua vez, estanque: os lucros
efetivamente distribuídos durante a vigência da união estável inequivocamente
são comunicáveis.
A propósito, vale lembrar
que, à luz do art. 197, I do Código Civil, “não corre prescrição entre cônjuges,
na constância da sociedade conjugal”. Logo, subentende-se que, numa
interpretação constitucionalmente extensiva, reconhecida pela jurisprudência,
pela garantia da isonomia, o mesmo se aplicaria aos companheiros, razão pela
qual tais verbas seriam, durante a relação, se comunicáveis, imprescritíveis.
Maria Berenice Dias apenas
pondera a aplicabilidade do disposto no art. 1.027 do CC, no sentido de que não
há direito de exigir o recebimento em caráter imediato dessa participação sobre
os dividendos devidos ao companheiro, “[...] concorrendo somente com a divisão
periódica dos lucros até a dissolução da sociedade”. (DIAS, 2016, p. 345).
A fim de dar vazão a tal
iniciativa, o companheiro está resguardado, nos termos do parágrafo único do
art. 600 do CPC/2015, segundo o qual “O cônjuge ou companheiro do sócio cujo
casamento, união estável ou convivência terminou poderá requerer a apuração de
seus haveres na sociedade, que serão pagos à conta da quota social titulada por
este sócio”, seguindo-se o rito disposto no art. 604. (BRASIL, 2015).
Uma vez admitida a
comunicabilidade dos frutos da participação societária, tem-se que não cabe ao
ex-companheiro pleitear o ingresso na sociedade, mas, como destaca Alfredo de
Assis Gonçalves Neto, ao tratar do ex-cônjuge, quanto à cota social, mutatis mutandis, este detém tão-somente
“[...] os direitos patrimoniais contidos nessa parte”, em outas palavras,
“[...] não tem direito de se tornar sócio [...], a não ser que o consintam os
demais sócios, tendo direito à liquidação da quota ou das quotas sociais
havidas na partilha dos bens do casal”. (GONÇALVES NETO, 2016, p. 466).
Outro
ponto que merece atenção nessa questão societária em órbita à esfera familiar,
trazida por Paulo Nader (2016, p. 416), é disregard
doctrine às avessas. O autor explica a hipótese de ação fraudulenta do
cônjuge ou companheiro que utiliza a pessoa jurídica da qual é sócio para
desviar recursos do patrimônio familiar. Nesse caso, a orientação apresentada é
de “[...] quebra do princípio da incomunicabilidade dos bens sociais e
particulares”, o que deverá ser processado através de um incidente, nos moldes
do art. 133 e seguintes do CPC/2015, que se enquadrou num paradigma
constitucional do Estado Democrático de Direito, evitando-se decisões surpresas,
nos moldes dos artigos 9º e 10 do mesmo Diploma Processual, que privilegiam o
Princípio do Contraditório, sob pena de nulidade, ressalvadas as raras
exceções. Essa medida, explica Paulo Nader, útil em divórcios, ações de
alimentos, por exemplo, visa “[...] recambiar para o acervo familiar os bens
dele subtraídos ou não incorporados”. (NADER, 2016, p. 416).