terça-feira, 17 de setembro de 2013

A garantia da justiça gratuita às pessoas jurídicas sem fins lucrativos na Justiça do Trabalho

Juliana Mello Vieira

Advogada, Mestre em Ciências Juridico-Civilisticas  pela Universidade de Coimbra

*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 14, em 08/05/2009


A assistência judiciária já se encontra regulada em nosso Ordenamento Jurídico desde 1950, ano de edição da famosa lei da assitência judiciária, lei 1.060. No entanto, foi somente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal da redemocratização que a assistência judiciária, ou a “gratuidade de justiça” foi erigida a princípio constitucinal fundamental, corolário do princípio maior de acesso à justiça, nos termos do artigo 5º, inciso LXXIV, in verbis: “O Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

Cumpre inicialmente tecermos alguns comentários acerca desta inovação. Por um lado, houve a ampliação do alcance da assistência que deixou de ser limitada ao âmbito jurisdicional, ou judiciário, para ser garantida também em âmbito extrajudicial, no mais amplo sentido de “jurídico”, como a todo e qualquer necessitado, sem estar vinculado à pessoa física que tenha risco de prejuízo a seu sustento ou de sua família.

Ademais, a contrário do tratamento dado ordinariamente, a Constituição não estabeleceu restrições quanto às isenções ou gratuidades, deixando clara a intenção de não permitir que uma obstrução de ordem econômica possa impedir o acesso de qualquer pessoa à plena e suficiente prestação jurisdicional. Enquanto a lei infraconstitucional estabelece uma lista taxatixa dos valores que estariam isentos em razão da concessão do benefício (arts. 5 e 6), o qual por óbvio não alcança todas as despesas envolvidas num processo judicial, como por exemplo o depósito judicial.

Nesse particular, podemos já adiantar que, ainda que se queira discutir se tal valor constitui despesa, vez que seu intuito é a garantia de satisfação da própria jurisdição, fato é que a própria execução de eventual condenação, nos termos da lei afim, pode ser satisfeita de outras formas que não em dinheiro, sendo certo que o executado nem sempre terá liquidez imediata. Não seria razoável, portanto, que antes mesmo de uma condenação definitiva a ele fosse dada pena maior, impedindo-o de se valer de todos os meios em direito admitidos para defesa de seus direitos.

Sob outras perspectivas, contudo, verifica-se que a Carta Magna adotou postura um pouco mais restrita à lei ordinária. Passou-se a exigir prova da hipossuficência econômico-financeira, ao destinar a justiça gratuita apenas aos que comprovarem insuficiência de recursos. Enquanto a lei infraconstitucional admite a simples declaração da parte quanto à sua insuficiência como prova bastante para a concessão do benefício. Nos termos do artigo 4º do aludido diploma “A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação(,,) de que não está em condições de pagar as custasd do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família”.

A despeito da divergência jurisprudencial, parece estar se tornando majoritária a corrente que, nos termos preconizados pela Constituição Federal, exige a produção de prova pela parte que se declara hipossuficiente.

No âmbito da Justiça do Trabalho, por sua vez, há um tratamento legal especial. A lei 5.584, de 1970 acrescentou novos elementos quanto à definição de hipossuficiência já prelecionada na lei 1.060/50, asseverando, mesmo antes da edição da Constituição de 1988, a necessidade de se comprovar a alegação da parte de insuficiência de recursos. Estabelece a lei 5.584/70 que “a assistência é devida a todo aquele que perceber salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal, ficando assegurado igual benefício ao trabalhador de maior salário, uma vez provado que sua situação econômica não lhe permite demander, sem prejuízo do sustento próprio ou da família”. Devendo a situação econômica do trabalhador ser comprovada por atestado do Ministério do Trabalho (ex vi artigo 14 e parágrafos).

Por sua vez, o art. 790, §3º da CLT, já com redação posterior à ediçaõ da Constituição de 1988 (lei 10.537 de 2002) parece ter acompanhado a lei ordinária 1.060, prescindindo da prova da alegação de hipossuficiência para a concessão do benefício, e mantendo a limitação à pessoa física. In verbis: “É facultado aos juízes, órgãos julgadores e presidentes (...) conceder, a requerimento ou de ofício, o benefício da justiça gratuita, inclusive quanto  a traslados e intrumentos, àqueles que perceberem salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal, ou declararem, sob as penas da lei, que não estão em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou de sua família”.

Dentre as diversas abordagens possíveis, uma questão sobressai ante os diferentes tratamentos legislativos, qual seja a possibilidade de se estender o benefício da gratuidade de justiça às pessoas jurídicas, especialmente as de caráter beneficente e sem fins lucrativos que, por sua própria constituição e estrutura, dependem de tal benefício para o amplo acesso à prestação jurisdicional. E por outro o alcance de tal assistência, cabendo posicionar-se se caberia ao prudente arbítrio do julgador definer o alcance da gratuidade a fim de evitar qualquer restrição econômica às partes, ou se deveria prevalecer o rol taxativo da lei 1.060/50, que não inclui, por exemplo, a isenção do depósito recursal.

Em balizada manifestação, o professor Cassio Scarpinella Bueno preleciona que:

“É correto o entendimento que vem prevalecendo no âmbito dos Tribunais, de que a isenção tratada no diploma legislativo destacado no parágrafo anterior seja concedida também a pessoas jurídicas, não obstante a redação da Lei n. 1.060/1950 dar a entender que seu destinatário seria apenas a pessoa física. Suficiente, para tanto, que elas afirmem não possuir recursos para suportar os custos do litígio sem prejuízo de suas próprias atividades. Injustificável, à luz da grandeza do beneplácito constitucional, mormente quando inserida no contexto amplo de acesso à justiça, a leitura literal da regra legislativa. Deve prevalecer, no caso, o resultado de sua filtragem constitucional.”

Considerando o tratamento dado na legislação trabalhista, em confronto à toda sistemática inaugurada pela Ordem Constitucional de 1988, pregando o amplo e irrestrito acesso à justiça e aos meios de defesa de interesses no Judiciário, pode-se compreender a acirrada discussão jurisprudencial acerca do tema.

Primeiramente, há decisões que se posicionam, consoante a legislação trabalhista sobre o tema, em favor da impossibilidade de se estender às pessoas jurídicas a assistência jurídica. Alguns tribunais regionais e mesmo o Tribunal Superior do Trabalho, contudo, já apresentam decisões em sentido contrário, admitindo que pessoas jurídicas, em casos excepcionais e devidamente comprovada a hipossuficiência econômica, poderão fazer jus ao benefício de gratuidade de justiça.

O Supremo Tribunal Federal já manifestou o seguinte posicionamento:

ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA - PESSOA JURÍDICA. Ao contrário do que ocorre relativamente às pessoas naturais, não basta a pessoa jurídica asseverar a insuficiência de recursos, devendo comprovar, isto sim, o fato de se encontrar em situação inviabilizadora da assunção dos ônus decorrentes do ingresso em juízo.
In casu , o agravante, ao requerer os benefícios da justiça gratuita, apenas declara no sentido de que não tinham condições de arcar com as despesas do processo por encontrar-se em estado de necessidade, sem contudo demonstrar de forma cabal a dificuldade econômica.- (Rcl-ED-AgR-1905/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 15.08.02 e publicado no DJU de 20.09.02).

Decisão do TST:

“De fato, dispõe o inciso LXXIV do artigo 5° da Constituição Federal que o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, situação que não se presume em favor de empregadores em situação de funcionamento regular. Destarte, na Justiça do Trabalho, o empregador/reclamado só fará jus aos benefícios da gratuidade judiciária quando for decretada a quebra pelo juízo falimentar, na forma do Enunciado n° 86 desta Corte, ou comprovar a insuficiência de recursos para o pagamento das custas, que levaria a situação de insolvência civil, na forma do artigo 5°, LXXIV, da Constituição Federal. Portanto, para se aproveitar dos benefícios da Justiça Gratuita , o agravante deveria ter comprovado cabalmente o fato de se encontrar em situação inviabilizadora da assunção dos ônus decorrentes do ingresso em juízo, ou seja, que o pagamento das custas causaria situação de insolvência. Não constando do processo prova da circunstância de se encontrar a agravante à beira da insolvência, inviável a aplicação da imunidade constitucional para garantia da gratuidade judiciária”.- (TST-AIRR-3244/2001-003-17-0, 1ª Turma, publicado no DJU de 24.03.06).

E do TRT da 9ª Região:

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO ORDINÁRIO. BENEFÍCIO DA JUSTIÇA GRATUITA. PESSOA JURÍDICA. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO DA INSUFICIÊNCIA ECONÔMICA. O benefício da gratuidade da justiça estende-se às entidades pias e beneficentes, bem como às sociedades com fins lucrativos organizadas sob a forma de microempresa e firma individual e abrange a dispensa das custas e do depósito recursal, tendo em vista que o artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal de 1988 não faz distinção entre pessoas física e jurídica e comete ao Estado a obrigação de prestar a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência econômica. No entanto, para a concessão é necessário que a pessoa jurídica comprove a impossibilidade de suportar os valores relativos às custas processuais e depósito para garantia do juízo, sob pena de deserção. Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (TRT 9ª R.; Proc. 03936-2002-021-09-40-9; Ac. 25373-2003; Terceira Turma; Rel. Juiz Altino Pedrozo dos Santos; Julg. 01/10/2003; DJPR 21/11/2003) (Publicado no DVD Magister nº 17 - Repositório Autorizado do TST nº 31/2007)

É posicionamento mais balizado, destarte, o que aponta no sentido de que, comprovada a insuficiência de recursos, a pessoa jurídica fará jus ao benefício da gratuidade de justiça.

Ultrapassada esta questão, surge outra discussão, agora no tocante ao alcance da gratuidade, ou das isenções. As decisões que têm se manifestado favoráveis à concessão do benefício limitam-no às custas, o que ensejará também uma limitação econômica ao amplo acesso jurisdicional a tais entidades.

O Tribunal Superior já editou instrução normativa, n.º 3/93, que determina:

“X - Não é exigido depósito recursal, em qualquer fase do processo ou grau de jurisdição, dos entes de direito público externo e das pessoas de direito público contempladas no Decreto-Lei n.º 779, de 21 . 8 . 69, bem assim da massa falida, da herança jacente e da parte que, comprovando insuficiência de recursos, receber assistência judiciária integral e gratuita do Estado (art. 5º, 74ºLXXIV, CF).”

Contudo em decisões atinentes à concessão do benefício a pessoas jurídicas, com ou sem fins lucrativos, o Tribunal Superior tem se manifestado contrário a que o benefício possa implicar na dispensa do depósito recursal.

Considerando que os poucos valores auferidos pelas entidades sem fins lucrativos, por exemplo, são obrigatoriamente revertidos em ações e projetos de desenvolvimento social e educacional, havendo uma evidente e inexorável limitação da capacidade econômico-financeira, temos que qualquer imposição de ordem financeira implicará em restrições e prejuízo à atividade de interesse público que é realizada pela mesma.

Ante o exposto, verifica-se que a despeito do alcance principiológico e constitucional do acesso à justiça e da assistência juridica garantida pelo Estado, ainda há um longo caminho a se percorrer no sentido da concretização e efetivação do benefício, em seu mais amplo sentido.

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