Stanley Martins Frasão
Advogado, sócio de
Homero Costa Advogados, Mestre em Direito Empresarial
*publicado originalmente
no Boletim Jurídico N.º 10, em 19/12/2008
Longo caminho, de algumas
décadas, percorreu no direito brasileiro a chamada Doutrina da Desconsideração
da Personalidade Jurídica (“Lifting the Corporate Veil” ou “Disregard
Doctrine”), desde as proposições “de lege ferenda” dos pioneiros
doutrinadores, para um instituto em
elaboração, do pensamento da doutrina à
construção pretoriana.
Durante os noventa e dois
anos de vigência do Código Civil de 1916 (até 2008) a regra do artigo 20 pairou
no patamar de quase um dogma por sobre o direito societário brasileiro, qual
ápice da pirâmide do direito empresarial: “As pessoas jurídicas têm existência
distinta da dos seus membros”.
O professor OSMAR BRINA
CORRÊA-LIMA (Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade Anônima,
1989, p.140) sintetizou o dispositivo: “como corolário, tem-se que o patrimônio
de uma sociedade não se confunde com os patrimônios dos sócios, que a compõem.”¹
Assim, como regra geral,
vigorou a separação patrimonial da sociedade das pessoas de seus sócios.
Há tempos, os nossos
Tribunais vêm aceitando a teoria construída pelo direito anglo-americano,
conhecida como “doutrina da desconsideração da pessoa jurídica”, quebrando a
norma do aludido dispositivo, quando praticados atos ultra vires.
O Projeto de Código Civil
do professor MIGUEL REALE, hoje Lei 10.406 de 2002, acolheu a “doutrina da
desconsideração da pessoa jurídica”².
O professor RUBENS REQUIÃO
transcreveu na Conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná a observação de Rolf
Serik sobre o assunto:
A disregard doctrine
aparece como algo mais do que um simples dispositivo do Direito americano de
sociedade. É algo que aparece como conseqüência de uma expressão estrutural da
sociedade. E, por isso, em qualquer país em que se apresente a separação
incisiva entre a pessoa jurídica e os membros que a compõem, se coloca o problema
de verificar como se há de enfrentar aqueles casos em que essa radical
separação conduz a resultados completamente injustos e contrários ao direito.³
Naquela mesma Conferência,
concluiu o professor RUBENS REQUIÃO:
“..., diante do abuso de direito e da fraude no uso da personalidade jurídica, o juiz brasileiro tem o direito de indagar, em seu livre convencimento, se há de consagrar a fraude ou o abuso de direito, ou se deva desprezar a personalidade jurídica, para, penetrando em seu âmago, alcançar as pessoas e bens que dentro dela se escondem para fins ilícitos e abusivos.”4
Outro docente de Direito
Civil da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, o professor
José Lamartine Corrêa, em artigo pioneiro, hoje igualmente clássico, fez, entre
os primeiros, o discurso inaugural sobre a doutrina da desconsideração da
personalidade jurídica e seu potencial de aplicação por vir no direito
brasileiro.
Com isso, na lição do
civilista (Lamartine Corrêa), ou no ensino do comercialista (Rubens Requião),
lançaram-se as bases doutrinárias e proposições “de lege ferenda”, para que se
levantasse o véu da personalidade jurídica (“lifting the corporate veil”) e se
desconsiderasse a pessoa moral (“disregard doutrine”), sempre e onde a
personalidade jurídica fosse desviada em proveito da fraude à lei e para a
prática de atos ilícitos.
A professora MARIA HELENA
DINIZ (Curso de Direito Civil Brasileiro, 2002, p. 262) sobre o assunto
esclarece:
“Essa doutrina tem por escopo responsabilizar os sócios pela prática de atos abusivos sob o manto de uma pessoa jurídica, coibindo manobras fraudulentas e abuso de direito, mediante a equiparação do sócio e da sociedade, desprezando-se a personalidade jurídica para alcançar as pessoas e bens que nela estão contidos.”5
Das proposições para um
direito futuro (“de lege ferenda”), a Teoria da Desconsideração ganhou foro de
direito positivo (“de lege lata”).
A aludida doutrina, nas
relações consumeristas, a partir da vigência da Lei 8.078, de 11.09.1990 –
Código de Defesa do Consumidor, conhecido como CDC, foi mitigada a rigidez do
célebre artigo 20, do Código Civil de 1916, em face da normatização da
desconsideração da personalidade jurídica nos campos do Direito Civil e
Comercial. O CDC em seu artigo 28 prescreve:
“Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 1º (Vetado).
§ 2º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.§ 3º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes deste Código.§ 4º As sociedades coligadas só responderão por culpa.§ 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.”
O Código Civil de 2002 foi
promulgado trazendo, dentre muitos, o artigo 50, sem correspondência com o
Codex de 1916, que deve ser objeto de análise, a saber:
“Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.”
O professor RUY ROSADO DE
AGUIAR JÚNIOR (Projeto do Código Civil: As Obrigações e os Contratos, p. 4)6,
sobre o citado artigo 50, antes da promulgação do Código Civil, se manifestou
no seguinte sentido:
“É a teoria objetiva, a prescindir da fraude e se satisfazendo com o desvio da finalidade ou a confusão de patrimônios, com ou sem fraude, com ou sem prejuízo a terceiro (...). A disposição do projeto não é igual à do Código de Defesa do Consumidor (...) [porque] não inclui o fato objetivo da confusão de patrimônio como causa de desconsideração, ao mesmo tempo em que se refere a outras situações específicas, não contempladas no Projeto.”
Dessa forma, o Código
Civil de 2002 abandonou, parcialmente, o princípio romano societas distat a
singulis, porque o patrimônio dos sócios poderá se fundir ao da sociedade, em
duas hipóteses: (i) abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio
de finalidade; ou (ii) abuso da personalidade jurídica, caracterizado pela
confusão patrimonial. Buscar-se-á, com isso, a adequação da justa indenização
do dano causado, sem que isso cause qualquer desestímulo à atividade
empresarial.
Mas se for uma sociedade
limitada regida pelas normas da sociedade simples, o parágrafo único do artigo
1.015 prescreve uma exceção de imediato à desconsideração da personalidade
jurídica em caso de abuso, caracterizado pelo desvio de finalidade, porque o
excesso por parte dos administradores poderá ser oposto a terceiros quando se
tratar de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade,
ampliando-se, pois, a importância e a necessidade de se conhecer o contrato
social da sociedade.
Agora se o contrato social
da sociedade limitada tiver a regência pelas normas da sociedade anônima, não
haverá exceção, na forma do artigo 158 da Lei 6.404/1976.
Assim, se o administrador
abusar da personalidade jurídica, caracterizada pelo desvio de finalidade,
estará envolvendo diretamente não somente os seus bens particulares, mas os dos
sócios, que nesta hipótese passarão a ter a responsabilidade solidária.
A responsabilidade dos
sócios é subsidiária, isto é, o sócio demandado pelo pagamento da dívida;
poderá exigir que sejam primeiro excutidos os bens do administrador e da
sociedade (art. 596 do CPC).
A esse respeito, o
professor AMÍLCAR DE CASTRO (Do Procedimento de Execução: Código de Processo
Civil, 2000, p. 76-77) esclareceu:
“A responsabilidade subsidiária dos sócios só aparece depois de verificada a insuficiência dos haveres sociais. Os sócios são solidários para as obrigações da sociedade, e em primeiro lugar deve ser executado quem contratou: a sociedade. Por isso os credores, sem acionar e executar a devedora, não podem executar os sócios por obrigações sociais, como se os mesmos tivessem contratado diretamente por conta própria.”7
Dessa forma, entendemos
que administrador e sócios responderão, no cumprimento de suas obrigações, “com
todos os seus bens, presentes e futuros (responsabilidade), salvo as restrições
estabelecidas em lei (impenhorabilidade)”8, (art. 591).
O Projeto de Lei 3401/08,
do deputado Bruno Araújo (PSDB-PE), que disciplina o procedimento de declaração
judicial de desconsideração da personalidade jurídica, resgata a iniciativa do
PL nº 2.426/03, este já arquivado. O PL estabelece regras processuais para
aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, além de
assegurar o prévio exercício do contraditório em hipóteses de responsabilidade
pessoal de sócio por débito da pessoa jurídica.
Às decisões ou atos
judiciais de quaisquer dos órgãos do Poder Judiciário que imputarem
responsabilidade direta, em caráter solidário ou subsidiário a membros,
instituidores, sócios ou administradores pelas obrigações da pessoa jurídica,
aplicar-se-á o aludido PL.
A parte que postular a
desconsideração da personalidade jurídica ou a responsabilidade pessoal de
membros, instituidores, sócios ou administradores por obrigações da pessoa
jurídica, indicará, necessária e objetivamente, em requerimento específico,
quais os atos por eles praticados que ensejariam a respectiva
responsabilização, na forma da lei específica, o mesmo devendo fazer o
Ministério Público nos casos em que lhe couber intervir no processo.
Se as condições
mencionadas no parágrafo anterior deixarem de ser observadas, o juiz deverá
indeferir liminarmente o pleito.
O juiz estabelecerá o
contraditório, assegurando o prévio exercício da ampla defesa, para somente
após decidir sobre a possibilidade de decretar a responsabilidade dos membros,
instituidores, sócios ou administradores por obrigações da pessoa jurídica.
Os membros, instituidores,
sócios ou administradores da pessoa jurídica serão citados ou, se já integravam
a lide, serão intimados, para se defenderem no prazo de dez dias, sendo-lhes
facultada a produção de provas, após o que o juiz decidirá o incidente.
Há uma novidade no
Projeto, que dificulta a vida dos advogados. Quando forem várias as pessoas
físicas eventualmente atingidas, os autos permanecerão em cartório e o prazo de
defesa para cada um deles contar-se-á a partir da respectiva citação, quando
não figuravam na lide como partes, ou da intimação pessoal se já integravam a
lide, sendo-lhes assegurado o direito de obter cópia reprográfica de todas as
peças e documentos dos autos ou das que solicitar, e juntar novos documentos.
A grande novidade é que o
Juiz não poderá decretar de ofício a desconsideração da personalidade jurídica.
Para que seja decretada será necessária a oitiva do representante do Ministério
Público e nos casos expressamente previstos em lei, sendo vedada a sua aplicação
por analogia ou interpretação extensiva.
O Juiz deverá facultar à
pessoa jurídica a oportunidade de satisfazer a obrigação, em dinheiro, ou
indicar os meios pelos quais a execução possa ser assegurada, antes de decretar
a desconsideração da personalidade jurídica.
E mais, a mera
inexistência ou insuficiência de patrimônio para o pagamento de obrigações
contraídas pela pessoa jurídica não autoriza a desconsideração da personalidade
jurídica, quando ausentes os pressupostos legais.
Não serão atingidos os
bens particulares de membro, instituidor, sócio ou administrador que não tenha
praticado ato abusivo da personalidade em detrimento dos credores da pessoa
jurídica e em proveito próprio.
Considerar-se-á em fraude à execução a alienação ou oneração
de bens pessoais de membros, instituidores, sócios ou administradores da pessoa
jurídica, capaz de reduzi-los à insolvência, quando, ao tempo da alienação ou
oneração, tenham sido eles citados ou intimados da pendência de decisão acerca
do pedido de desconsideração da personalidade jurídica, ou de responsabilização
pessoal por dívidas da pessoa jurídica.
Aprovado o PL, a lei
entrará em vigor na data de sua publicação, aplicando-se, imediatamente, a
todos os processos em curso perante quaisquer dos órgãos do Poder Judiciário,
em qualquer grau de jurisdição.
__________________________________
¹ CORRÊA-LIMA, Osmar
Brina. Responsabilidade Civil dos Administradores de Sociedade Anônima. Rio de
Janeiro: Aide, 1989. p.140.
² Art. 50, parágrafo
único, do Projeto de Lei do Senado Federal n. 118/84.
³ In RT 410/14.
4 Ob. Cit. 410/14.
5 DINIZ, Maria Helena. Curso
de Direito Civil Brasileiro. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2002, vol. I. p. 262.
6 AGUIAR JÚNIOR, Ruy
Rosado de. Projeto do Código Civil: as Obrigações e os Contratos. São Paulo:
Revista dos Tribunais. p. 4.
7 CASTRO, Amílcar de. Do
Procedimento de Execução: (Código de Processo Civil). Obra atualizada e
revisada por FRASÃO, Stanley Martins; BARROS, João Pedro da Costa. 2 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2000. p.76-77.
8 CASTRO, Amílcar de.
Ibid., 2000, p.52.
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