Ana Carolina Silva
Barbosa ¹
Júlia Goulart
Swerts ²
¹Advogada,
especialista em Direito Tributário pelo CAD
² Estagiária de
Direito
*publicado
originalmente no Boletim Jurídico N.º 23 em 12/05/2010
O Supremo Tribunal Federal
decidiu, na sessão de 10 de março de 2010, no Recurso Extraordinário (RE)
478410, que o Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS) não poderá cobrar
contribuição previdenciária incidente sobre o vale-transporte pago em dinheiro
aos funcionários do Unibanco.
Seguem trechos do voto do
Ministro Relator Eros Grau:
“Pago o benefício de que se cuida neste recurso extraordinário em vale-transporte ou em moeda, isso não afeta o caráter não salarial do benefício.(...)A cobrança de contribuição previdenciária sobre o valor pago, em dinheiro, a título de vales-transporte, pelo recorrente aos seus empregados afronta a Constituição, sim, em sua totalidade normativa.”
Vale-transporte é o
benefício “que o empregador, pessoa física ou jurídica, antecipará ao empregado
para utilização efetiva em despesas de deslocamento residência-trabalho e
vice-versa, através do sistema de transporte coletivo público, urbano ou
intermunicipal e/ou interestadual com características semelhantes aos urbanos, geridos
diretamente ou mediante concessão ou permissão de linhas regulares e com
tarifas fixadas pela autoridade competente, excluídos os serviços seletivos e
os especiais.”¹
Conforme dispõe o artigo
2º da Lei 7.418/85 (renumerado pela Lei 7619/87), o vale-transporte não tem
natureza salarial – e, portanto, não se
incorpora à remuneração para quaisquer efeitos –; não constitui base de
incidência de contribuição previdenciária ou de FGTS; e tampouco se configura
como rendimento tributável do trabalhador.
A Lei 8.212/91 dispõe, em
seu artigo 22, que a contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade
Social, sobre as remunerações pagas aos empregados, será de:
“I - vinte por cento sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas a qualquer título, durante o mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos que lhe prestem serviços, destinadas a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços, nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa. (Redação dada pela Lei nº 9.876, de 1999).”
Porém, conforme parágrafo
2º do mesmo artigo, as parcelas tratadas pelo artigo 28, parágrafo 9º, da
referida lei – estando entre elas, o vale-transporte – não integram a
remuneração para efeito de contribuição.
“Art. 28. (...)§ 9º Não integram o salário-de-contribuição para os fins desta Lei, exclusivamente:(...)f) a parcela recebida a título de vale-transporte, na forma da legislação própria;”
No entanto, no julgamento,
a discussão foi travada acerca da
hipótese de atribuição de caráter salarial ao vale-transporte pago em
espécie, o que neste caso, significaria, constituir, sobre este, base de
incidência da contribuição previdenciária.
A jurisprudência dos
Tribunais Regionais Federais, anteriormente, era contrária aos contribuintes,
no sentido de que o pagamento em dinheiro de valores a título de
vale-transporte possuía caráter salarial, devendo integrar o cálculo da
contribuição. Vejamos:
“PREVIDENCIÁRIO. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL. VALE-TRANSPORTE. PARCELA PAGA EM PECÚNIA. DESCOFORMIDADE COM A LEI N. 7.418/85 (ART. 3º) E DECRETO N. 95.6247/87 (ART. 5º). CARÁTER REMUNERATÓRIO.1. O vale-transporte, quando pago em desconformidade com a legislação pertinente tem caráter remuneratório e integra a base de cálculo da contribuição previdenciária.2. O pagamento, em dinheiro, de valores a título de vale-transporte, configura salário in natura, uma vez que a legislação somente admite tal exceção no caso de falta ou insuficiência de estoque de vale-transporte necessário ao atendimento da demanda e ao funcionamento do sistema, situação essa que não restou comprovada.3. Apelação a que se nega provimento.”(AMS 2001.36.00.005120-7/MT, Rel. Desembargador Federal Carlos Fernando Mathias, Oitava Turma,DJ p.168 de 06/10/2006)
“TRIBUTÁRIO – SALÁRIO DE CONTRIBUIÇÃO – CONTRIBUIÇÃOPREVIDENCIÁRIA - AUXÍLIO-CRECHE/BABÁ – VERBA INDENIZATÓRIA – NÃO-INCIDÊNCIA - VALETRANSPORTE - PAGO EM PECÚNICA – VERBA REMUNERATÓRIA – INCIDÊNCIA. 1-Não incide contribuição previdenciária sobre o auxílio creche/babá, pago pelo empregador, vez que referida verba tem caráter indenizatório e não salarial. Precedentes jurisprudenciais. 2-Por outro lado, não possui caráter indenizatório o vale-transporte pago em dinheiro (sem que se comprovasse a falta de tickets), devendo, portanto, o referido valor ser considerado como parte integrante da remuneração, e, assim, compor a base de cálculo da contribuição previdenciária. 3-Apelação do Impetrante e remessa necessária conhecidas e desprovidas.”(AMS 2000.02.01.018361-5/RJ, Rel. José Antônio Lisboa Neiva, Terceira Turma, DJ p. 55 de 01/09/2009)
“PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO. ARTIGO 557, § 1º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. VALE-TRANSPORTE. PAGAMENTO EM DINHEIRO. CONVENÇÃO COLETIVA. INCIDÊNCIA DE CONTRIBUIÇÃO. 1. O pagamento do o vale-transporte em pecúnia não atende à legislação que o regula e integra a remuneração do empregado para o cálculo da contribuição à Previdência Social. 2. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 3. O fato de haver Convenção Coletiva de Trabalho dispondo de forma diversa da determinada pelas Normas Legais que regem a concessão de vale-transporte não isenta a empresa de recolher a contribuição previdenciária quando o fornece em espécie. 4. Agravo a que se nega provimento.” (AC 2007.61.00.007034-4/SP, Rek. Henrique herkenhoff, Segunda Turma, DJ p. 99 em 26/11/2009).
Conforme pode se observar,
tais decisões fundamentavam-se na justificativa de que o pagamento do benefício
em pecúnia consistiria em violação ao disposto no artigo 5º do Decreto nº 95.247/87,
que dispõe que é vedado ao empregador substituir o vale transporte por
antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento, verbis:
“Art. 5°. É vedado ao empregador substituir o Vale-Transporte por antecipação em dinheiro ou qualquer outra forma de pagamento, ressalvado o disposto no parágrafo único deste artigo.”
Também defendeu-se a tese
de que o vale-transporte pago em dinheiro e de forma contínua passaria a
integrar a remuneração do empregado, incidindo a contribuição previdenciária,
com base no artigo 201, parágrafo II, da Constituição Federal:
“Art. 201. (...)§ 11 - Os ganhos habituais do empregado, a qualquer título, serão incorporados ao salário para efeito de contribuição previdenciária e conseqüente repercussão em benefícios, nos casos e na forma da lei.”
Entretanto, baseando-se no
Princípio da Legalidade, o Supremo Tribunal Federal entendeu que o
descumprimento da norma (no caso do Decreto)– que veda o pagamento do
vale-transporte em dinheiro – não descaracteriza a natureza do vale para efeito
de incidência de tributo.
Este raciocínio, adveio da
evolução da própria interpretação das normas trabalhistas e previdenciárias,
que, apesar da vedação artigo 5º do Decreto nº 95.247/87, passou a entender
que, por força do artigo 7º, inciso XXXVI, da Constituição Federal² – que trata
sobre o reconhecimento dos acordos e convenções coletivas – uma vez estipulado
na convenção coletiva da categoria, respeitado os limites determinados por lei,
o vale-transporte poderia ser pago em dinheiro.
Além disso, parte da
doutrina, considera ilegal a própria vedação contida no artigo 5º do Decreto nº
95.247/87, pois com base nos artigos 84³ e 494 da Constituição Federal, o
Decreto deve se manter restrito à lei que o mesmo visa regulamentar, não
podendo criar novas obrigações.
Mesmo que o objetivo do
Decreto seja o de evitar a fraude tributária por dissimulação, ou seja, evitar
que os empregadores aumentem a parcela referente ao vale-transporte – sobre a
qual não incide contribuição –, e diminuam o valor do salário, na tentativa de
burlar o pagamento da contribuição, não estaria alterada a legislação
tributária que prevê que o vale transporte não integra a base de cálculo da
contribuição previdenciária. Logo, não estaria o Fisco Previdenciário
autorizado exigir tributo de forma contrária à legislação federal.
Tal prática abusiva e
ilegal dos contribuintes deve ser combatida por meio de sanções administrativas
e fiscalização rigorosa, uma vez que ao incidir contribuição previdenciária
sobre o vale-transporte pago em dinheiro, se estaria cobrando tributo sem lei
que o defina e que o autorize, e ainda, de modo contrário à Lei nº 8.212/91.
O princípio da legalidade
é um dos princípios mais importantes do ordenamento jurídico brasileiro e vem
consagrado no artigo 5º, inciso II da
Constituição Federal, dispondo que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
No Direito Tributário, tal
princípio consiste no fato de que não há tributo que não seja preconizado pela
lei formal e material, que descreva a hipótese da incidência, a base de cálculo
e alíquotas, com a identificação do sujeito ativo e passivo.
Conforme, artigo 150,
inciso I, da Constituição Federal:
"Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça".
Portanto, a compreensão de
que o vale-transporte pago em espécie deve integrar a base de cálculo da
contribuição previdenciária, não observa o princípio da legalidade.
Além de se fundamentar no
Princípio da Legalidade, grande parte da fundamentação do Ministro Eros Grau,
relator do processo, foi no sentido de que não se pode relativizar o curso
legal da moeda nacional, o que também seria uma afronta à Constituição Federal,
pois, dessa forma, também se estaria relativizando o poder do Estado, que é
integrado a cada unidade monetária.
Portanto, o
vale-transporte pago em ticket ou em espécie, não tem natureza salarial, e não
integra a base de cálculo da contribuição previdenciária.
__________________
¹ Artigo 1º da Lei
7.418/85, que institui o Vale-Transporte e dá outras providências, com nova
redação dada pela Lei nº 7.619/87
² “Art. 7º, CF. São
direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à
melhoria de sua condição social:
(...)
XXVI - reconhecimento das
convenções e acordos coletivos de trabalho;”
³ “Art. 84, CF. Compete
privativamente ao Presidente da República:
(...)
IV - sancionar, promulgar
e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua
fiel execução;”
4“Art. 49, CF. É da
competência exclusiva do Congresso Nacional:
(...)
V – sustar os atos
normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos
limites da delegação legislativa;"
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