Silvia Ferreira
Persechini
Advogada,
especialista em Direito de Empresas pela PUC/MG e mestranda em Direito de
Empresa pela Faculdade de Direito Milton Campos
*publicado
originalmente no Boletim Jurídico N.º 21 em 04/02/2010
A fiança é garantia
fidejussória (pessoal) de qualquer dívida juridicamente exigível. Sua
finalidade é garantir o adimplemento de dívida contraída pelo devedor
principal, sendo que, na inadimplência deste, o patrimônio do fiador será
exposto à execução do credor.
A doutrina e a
jurisprudência sempre se divergiram sobre as consequências da fiança prestada
sem a outorga conjugal.
De acordo com Carvalho de
Mendonça (1955), “Se o marido prestar fiança sem acôrdo expresso da mulher, não
obriga a meação desta, salvo se a fiança fôr prestada em arrematação de rendas
públicas, caso êste em que obriga todos os móveis do casal e a parte dos
imóveis pertencentes ao marido”¹.
Lado outro, Venosa (1997),
na vigência do Código Civil de 1916, entendia que a fiança prestada sem outorga
conjugal seria ato anulável:
Questão maior nesse tópico é saber se a fiança prestada sem a outorga conjugal é nula ou anulável. Não há que se referir apenas a “outorga uxória” porque esta se refere apenas à autorização da mulher. A conclusão majoritária é tratar-se de nulidade relativa. De fato, o ato admite suprimento judicial e ratificação, só podendo a eiva ser alegada pelo cônjuge preterido ou por seus herdeiros (art. 239). Não pode sustentar essa nulidade o próprio fiador. Essa a opinião que se harmoniza com o sistema do ordenamento e assentada atualmente na jurisprudência.De outro lado, uma vez decretada a nulidade da fiança, a pecha inquina todo o negócio. Não há nulidade parcial, ficando preservada fiança no tocante à meação do cônjuge fiador. Muitas foram as decisões no passado que sufragaram esse entendimento. Tal não impede, porém, que o cônjuge defenda sua meação por meio de embargos de terceiro, o que não discute a higidez da fiança. Conclui-se que se o consorte pode optar pelo mais, que é demandar a nulidade da fiança, pode pleitear o menos, qual seja, pedir exclusão de sua meação, com base no art. 263, inc. X².
Percebe-se, portanto, que,
para Carvalho de Mendonça, a fiança prestada sem outorga conjugal, era ineficaz
com relação ao cônjuge que não havia anuído com a garantia. Por sua vez, para
Venosa, a fiança prestada sem a outorga conjugal, na vigência do Código Civil
de 1916, era ato anulável.
Nesse mesmo sentido,
Sílvio Rodrigues (1999) destaca que a fiança prestada sem a outorga conjugal,
na vigência do Código Civil de 1916, apesar de não apresentar tal solenidade
determinada pela lei (autorização do cônjuge), não seria ato nulo, mas sim
anulável:
Problema que se propõe,
neste campo, é o de saber se a fiança, sem outorga uxória, é ato nulo ou
anulável. Em favor da nulidade se encontra o argumento legal, pois o art. 145,
IV, declara nulo o ato em que for preterida solenidade que a lei declara
essencial. Ora, a outorga uxória é solenidade essencial, portanto a fiança,
dela desacompanhada, é ato nulo. Ora, o ato nulo é imprescritível,
irratificável e pode ser alegado por qualquer interessado, pelo Ministério
Público, e deve ser declarado de ofício, pelo juiz, quando encontrar provado. A
possibilidade óbvia de ratificação da fiança e o fato de só poder ser argüida
pela mulher ou outro interessado, a meu ver, tiram o ato do campo restrito das
nulidades absolutas. Aliás, não há lesão a um interesse coletivo. De modo que o
mínimo que se poderá dizer é que o ato se situa em um campo intermédio, como a
demonstrar que a realidade nem sempre cabe dentro dos quadros teóricos,
rigidamente elaborados pela doutrina.³
No que tange à
jurisprudência, na vigência do Código Civil de 1916, o entendimento majoritário
era no sentido de que a fiança prestada sem a outorga conjugal seria ato
anulável, visando tão somente a proteger o patrimônio do cônjuge que não anuiu
com a garantia, devendo, pois, esta ser limitada ao patrimônio do fiador,
considerando que este não pode se valer de sua própria torpeza para se eximir
da obrigação prestada:
Civil - Recurso Especial - Locação - Fiança - Outorga Uxória - Art. 235, III, CC - Regime de Separação Total de Bens - Validade - Dissídio Pretoriano não cortejado - Cabimento pela alínea B do art. 105, III, da CF - Impossibilidade. 1 - A fiança prestada por mulher casada, em regime de separação total de bens, não é nula, mas anulável e, mesmo assim, apenas para afastar a meação do cônjuge que não afiançou, subsistindo em relação aquele que prestou a garantia. [STJ. Recurso Especial n° 246829-SP. 5ª Turma. Relator Min. Jorge Scartezzino. DJU. 5.6.2000, p. 0024].Ação Anulatória - Falta de Interesse Processual - Fiança - Ausência de outorga Uxória - Confirmação da Sentença. - Sem as suas condições de admissibilidade, a ação será inexistente e não autorizará qualquer julgamento sobre o pedido, mesmo que para rejeitá-lo. A fiança prestada sem o consentimento do cônjuge é apenas anulável, desonerando apenas os bens do cônjuge prejudicado. [Extinto Tribunal de Alçada de Minas Gerais. Apelação Cível n° 400.012-8. Relator Mauro Soares de Freitas. DJU 27.8.2003].
Verifica-se, portanto, que
a jurisprudência citada acima considerava anulável a fiança prestada sem
outorga conjugal. No entanto, eventual declaração de anulabilidade não impedia
a produção de efeitos da garantia fidejussória em sua totalidade, na medida em
que apenas eram desonerados os bens do cônjuge que não havia autorizado a
fiança.
Nesse sentido, o Estatuo
da Mulher Casada (Lei n° 4.121 de 1962), em seu artigo 3° prevê que “Pelos
títulos de dívida de qualquer natureza, firmados por um só dos cônjuges, ainda
que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens particulares
do signatário e os comuns até o limite de sua meação”.
Com o advento do atual
Código Civil, não há mais razão para a discussão doutrinária e jurisprudencial
sobre ser nula ou anulável a fiança prestada sem a outorga conjugal.
O Código Civil de 2002
manteve a necessidade do consentimento do cônjuge para se prestar fiança, com
uma relevante modificação, na medida em que o artigo 1647 dispõe que, salvo no
regime de separação absoluta de bens, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização
do outro prestar fiança4. É que “Estipulada a separação de bens, estes
permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os
poderá livremente alienar ou gravar de ônus real” (art. 1687 do CC).
Além dessa modificação, o
artigo 1649 do Código Civil de 2002 determina expressamente que a fiança
prestada sem a outorga conjugal é ato anulável5: “A falta de autorização, não
suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará anulável o ato
praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até dois anos
depois de terminada a sociedade conjugal”.
Assim, a fiança deixará de
produzir seus efeitos, caso a sua anulabilidade seja decretada por decisão
judicial. Havendo a arguição da anulabilidade da fiança dada sem o devido
consentimento, essa garantia fidejussória será anulada não apenas quanto à
metade do cônjuge que não deu o seu consentimento, mas por inteiro. Ou seja, a
fiança deixará de produzir a totalidade de seus efeitos. É exatamente nesse
sentido a súmula n° 332 do Superior Tribunal de Justiça que assim dispõe: “A
fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total
da garantia”.
Não obstante o texto
normativo do artigo 1649 do Código Civil, há jurisprudência que entende que a
fiança prestada sem a outorga conjugal é ato nulo de pleno direito, e não
anulável:
FIANÇA. OUTORGA UXÓRIA. AUSÊNCIA. NULIDADE. A fiança prestada sem a outorga do cônjuge é nula de pleno direito, atingindo a garantia por completo, liberando-se tanto o cônjuge que não anuiu como o próprio fiador, nos exatos termos do entendimento hoje pacífico no Superior Tribunal de Justiça. Rejeitar as preliminares e dar provimento ao recurso [TJMG. Apelação cível n° 1.0433.06.175806-9/001. 15ª Câmara Cível. Relator Wagner Wilson. DJU 8.2.2007].EMBARGOS DE TERCEIRO - INEXISTÊNCIA DE OUTORGA UXÓRIA - NULIDADE DO ATO. A fiança prestada pelo cônjuge sem autorga do outro é passível de nulidade do ato por inteiro - inteligência dos artigos 239, 248, III e 249 do CC/16 e 1647, III do CCB/02, sendo o procedimento dos embargos de terceiro, expediente que visa afastar da constrição judicial o bem da propriedade ou posse do embargante ou do casal, também via própria para conhecer da nulidade da fiança materializada sem a outorga uxória [TJMG. Apelação Cível n° 2.0000.00.482270-2/000. 6ª Câmara Cível. Relator Sebastião Pereira de Souza. DJU 28.9.2005].
Lado outro, a doutrina
abaixo, apesar da promulgação do Código Civil de 2002, entende que a fiança
prestada sem outorga conjugal não seria ato anulável, mas sim ineficaz no que
tange à meação do cônjuge que não deu sua vênia:
[...] o reconhecimento da nulidade traz injustificável benefício ao garantido e ao garantidor, em prejuízo do credor, que pode ficar impossibilitado de satisfazer seu crédito. Sedutora é a vertente jurisprudencial que se inclina por entender, ainda que contra dispositivo expresso de lei (CC 1.649), que a fiança conferida sem a vênia conjugal não é nula e tampouco anulável, mas válida, tendo apenas sua eficácia reduzida à meação do fiador. Ou seja, é ineficaz somente em relação ao cônjuge anuente.
Em sede de
responsabilidade patrimonial dos cônjuges, mister atentar que ao menos um
artigo do Estatuto da Mulher Casada não se encontra revogado (EMC 3°): Pelos
títulos de dívida de qualquer natureza, firmado por um só dos cônjuges, ainda
que casados pelo regime de comunhão universal, somente responderão os bens
particulares do signatário e os comuns até o limite de sua meação. Essa norma
permanece no sistema jurídico, nunca foi derrogada, pois jamais outra lei
dispôs sobre o tema. Inclusive sua vigência é referendada na lei civil ao
afirmar, ainda que de forma pouco clara, no mesmo sentido (CC. 1.663 § 1°): as
dívidas contraídas no exercício da administração obrigam os bens comuns e
particulares do cônjuge que os administra, e os do outro na razão do proveito
que houver auferido6.
No entanto, não se pode
concordar com o entendimento citado acima. Isso porque, o artigo 1649 do Código
Civil atual prevê expressa e claramente que a fiança dada sem outorga conjugal
é ato anulável. Outrossim, o artigo 176 desse mesmo ordenamento civilista
confirma a anulabilidade da fiança prestada sem o consentimento do cônjuge, ao
dispor que: “Quando a anulabilidade do ato resultar da falta de autorização de
terceiro, será validado se este a der posteriormente”.
Assim, nos termos dos
artigos 1649 e 16507 do Código Civil de 2002, a fiança prestada sem a outorga
conjugal poderá ser anulada pelo cônjuge que não concedeu autorização para
tanto ou pelos herdeiros dele, sendo que o prejudicado com a decisão judicial
que anulou a garantia fidejussória terá direito regressivo contra o cônjuge que
prestou a fiança sem a outorga conjugal. Ademais, obviamente, o cônjuge que
proporcionou a invalidade da fiança não tem legitimidade para arguir a anulabilidade
da garantia, na medida em que não pode se valer de sua própria torpeza8.
________________________
¹CARVALHO DE MENDONÇA,
Manuel Inácio. Contratos no direito civil brasileiro. 3 ed. Rio de Janeiro:
Forense, t. II, 1955, p. 824.
²VENOSA, Sílvio de Salvo. op.
cit., p. 301.
³RODRIGUES, Sílvio. Direito
Civil. 24ª ed. São Paulo: Saraiva. v. VI., 1999, p. 137/138.
4Art. 1.647. Ressalvado o
disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro,
exceto no regime da separação absoluta:
[...]
III - prestar fiança ou
aval;
5Art. 1.649. A falta de
autorização, não suprida pelo juiz, quando necessária (art. 1.647), tornará
anulável o ato praticado, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação, até
dois anos depois de terminada a sociedade conjugal.
6DIAS, Maria Berenice. Manual
de direito das famílias. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.
196/197.
7Art. 1.650. A decretação
de invalidade dos atos praticados sem outorga, sem consentimento, ou sem
suprimento do juiz, só poderá ser demandada pelo cônjuge a quem cabia
concedê-la, ou por seus herdeiros.
8AÇÃO DE DESPEJO. OUTORGA
UXÓRIA. ALEGAÇÃO DE NULIDADE DA FIANÇA PELO PRÓPRIO FIADOR. IMPOSSIBILIDADE.
NEGÓCIO JURÍDICO PERFEITO. SENTENÇA MANTIDA. I - A alegação de nulidade da fiança
não favorece o próprio garantidor, porquanto estaria valendo-se de sua própria
torpeza, cabendo somente ao cônjuge ou aos herdeiros prejudicados tal argüição,
o que não é o caso [TJMG. Apelação Cível n° 1.0024.06.097996-0/001. 13ª Câmara
Cível. Relator Alberto Henrique. DJU. 6.11.2008].
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