Silvia Ferreira
Persechini
Advogada,
especialista em Direito de Empresas pela PUC/MG e mestranda em Direito de
Empresa pela Faculdade de Direito Milton Campos
*publicado
originalmente no Boletim Jurídico N.º 18 em 30/09/2009
O tema referente à
desconsideração da personalidade jurídica surgiu pela primeira vez, no direito
norte-americano, com base na teoria do disregard of legal entity estabelecida
na tese do Professor Wormser, segundo a qual “lifting the veil of the corporate
entity, we discover the truth”.
A sociedade é um ente
legal, com realidade no mundo jurídico¹, que foi criada para facilitar as
relações jurídicas e econômicas entre as pessoas, sendo o maior meio de geração
de riquezas no mundo. Assim, quando dotada de personalidade jurídica, a
sociedade tem capacidade para se tornar sujeito de direito e para exercer
direitos e obrigações, distinguindo-se, portanto, da figura de seus sócios e
possuindo patrimônio próprio. Por isso é dito que a pessoa jurídica,
obviamente, não tem uma realidade física, como das pessoas naturais, mas é
dotada do mesmo subjetivismo outorgado às pessoas naturais para atuar no mundo
jurídico.
Todavia, quando essa
pessoa jurídica, em prejuízo de seus credores, desvirtua de sua função para a
qual foi criada, ou seja, quando não tenha sido constituída para simplificar os
negócios em comum de seus sócios e facilitar as relações jurídicas e
econômicas, deve ser desconsiderada para que apareça a realidade.
Assim, a desconsideração
da personalidade jurídica significa abstrair, momentaneamente, a autonomia da
pessoa jurídica diante de seus respectivos sócios, em razão do desvirtuamento
de sua função.
Não se trata de uma teoria
contra a separação dos sujeitos (i) sociedade e (ii) seus sócios. A aplicação
dessa Teoria não visa à anulação da personificação jurídica, mas à declaração
provisória da ineficácia dessa personificação em um caso concreto.
Em outras palavras, a
Teoria em questão permite ao magistrado, naquele caso concreto de sua
competência, subestimar a personalidade jurídica para reprimir fraude ou abuso,
sem que isso enseje a extinção da personalidade jurídica. Não basta que a
sociedade pratique um ato ilícito qualquer, mas sim que ela seja constituída
e/ou utilizada com finalidade diversa daquela para a qual o direito permite a
sua criação.
Por isso, percebe-se que a
desconsideração ora em análise é distinta da despersonificação, esta sim tem
como objetivo anular a personalidade jurídica por lhe faltar algum requisito
essencial para sua existência, por exemplo, nos casos de invalidade do contrato
social.
De acordo com a Teoria da
Desconsideração da personalidade jurídica, a abstração da personalidade
jurídica só pode ser aplicada quando a sociedade – dotada de personalidade
jurídica – for utilizada de forma abusiva, desvirtuando-se de sua função, em
prejuízo aos interesses de credores. Nesse particular, vale ressaltar que se
abusa de um direito quando se utiliza dele de forma contrária à sua função
social, jurídica ou ética. Em outras palavras, a noção que representa o ideal
originário da disregard doctrine é essa idéia de que a desconsideração da
personalidade jurídica apenas pode ser aplicada quando houver a caracterização
do abuso da constituição e/ou utilização da personalidade jurídica, sendo que,
esse abuso da personalidade jurídica só se concretizaria quando houver a prova
efetiva do dolo, ou seja, a comprovação cabal da atitude desonesta dos sócios
em detrimento dos credores da sociedade.
Apesar de a noção ideal da
disregard doctrine considerar e demonstrar que essa doutrina só pode ser
aplicada quando há a caracterização do abuso de personalidade jurídica, há
doutrina, jurisprudência e dispositivos legais que admitem a aplicação dessa
Teoria em situações em que há simplesmente a prática de atos ilícitos e/ou a
infração dos estatutos ou do contrato social da sociedade, como nos casos em
que há atos praticados com excesso de poder ou abuso de direito.
Como já mencionado, as
pessoas jurídicas são uma realidade no mundo jurídico, porque possuem
capacidade de sujeito de direito e patrimônio próprio, sendo que o seu objeto
social será executado por seus administradores.
Diante disso, há situações
em que os administradores da pessoa jurídica podem agir ilicitamente, gerando a
sua responsabilidade própria perante terceiros.
Os atos praticados pelos
administradores, dentro do objeto social da pessoa jurídica, porém fora dos
limites de atuação desses, são considerados atos ilícitos, porque realizados
com excesso de poder. Por isso, esses atos não devem vincular a sociedade e,
portanto, podem ser oponíveis aos terceiros prejudicados. Podemos pensar na
suposição em que uma sociedade preveja em seu contrato social que seus
administradores não podem prestar aval. Não obstante essa limitação de poder,
um administrador dá essa garantia cambiária, em uma nota promissória, para
estabelecer negócio com terceiro. Tal caso é hipótese da prática de excesso de poder
e não pode vincular a sociedade.
Todavia, há casos em que o
ato exercido por administrador, com excesso de poder, não poderá ser oponível a
terceiros e vinculará a sociedade. Nesse particular, Luiz Gastão Paes de Barros
Leães ensina que “a limitação dos poderes de administração é somente oponível a
terceiros que tenham dela conhecimento, ou devessem ter em razão da
profissionalidade de seus atos, dada a circunstância de que a verificação dos
poderes dos diretores no Registro de Empresas não é fácil, nem entrou nos
hábitos do homem comum”.² É exatamente isso que prevê o nosso Código Civil
vigente, em seu art. 1015, ao tratar da Sociedade Simples:
Art. 1.015. No silêncio do contrato, os administradores podem praticar todos os atos pertinentes à gestão da sociedade; não constituindo objeto social, a oneração ou a venda de bens imóveis depende do que a maioria dos sócios decidir.Parágrafo único. O excesso por parte dos administradores somente pode ser oposto a terceiros se ocorrer pelo menos uma das seguintes hipóteses:I - se a limitação de poderes estiver inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade;II - provando-se que era conhecida do terceiro;III - tratando-se de operação evidentemente estranha aos negócios da sociedade.
Por sua vez, o art. 1016,
do mesmo ordenamento jurídico dispõe que “Os administradores respondem
solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no
desempenho de suas funções”. No mesmo sentido, determina o art. 158, da LSA,
que:
Art. 158. O administrador
não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da
sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente,
pelos prejuízos que causar, quando proceder:
I - dentro de suas
atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
II - com violação da lei
ou do estatuto.
Percebe-se, portanto, que
os dispositivos legais registrados acima prevêem hipóteses de responsabilidade
civil do próprio administrador, em razão de ato praticado por este contra o
pacto social. Assim, ressalta-se que essas situações não são casos de
desconsideração da personalidade jurídica, para atingir o patrimônio de seus
sócios/administradores, mas sim de imputação direta da responsabilidade à
pessoa física.
Ainda sobre a
responsabilidade civil dos administradores que praticam atos com excesso de
poder, deve-se salientar as hipóteses em que a prática desses atos ilícitos
poderá gerar a imputação desses atos às respectivas sociedades, aplicando-se,
para tanto, a Teoria da Aparência.
Nos casos em que os atos
praticados em violação ao pacto social forem ratificados, expressa ou
tacitamente, pela sociedade, esta será responsável pelo excesso de poder
realizado pelos seus administradores. Outrossim, Haroldo Malheiros Duclerc
Verçosa demonstra que, quando há a prática reiterada de um ato realizado com
excesso de poder por um administrador, aquele ato ilícito poderá ser imputado à
sociedade, em razão da Teoria da Aparência. Para exemplificar essa situação, o
autor cita o seguinte caso julgado pelo STJ:
De qualquer maneira, no
mundo jurídico real, a Teoria da Aparência tem sido aplicada, inclusive pelo
STJ em um caso no qual um banco concedeu empréstimos a uma companhia aberta,
havendo por ela assinado o presidente do conselho de administração. Para efeito
de negócios de tal natureza e de tal volume era necessário, pelo estatuto
social, prévia e expressa autorização do conselho de administração em reunião
colegiada, o que jamais ocorrera. As operações foram regularmente pagas pela
empresa até que ela descobriu serem o resultado de esquema fraudulento
capitaneado por aquele administrador, em proveito próprio – ocasião em que
suspendeu o pagamento das operações então vencidas. Como a prática havia durado
algum tempo e se repetido por algumas vezes, o Tribunal entendeu de aplicar a
Teoria da Aparência, baseado na alegação de que teria nascido um costume entre
as partes, que obrigava a sociedade mutuaria³.
Portanto, pode-se dizer
que, apesar do art. 47, do CC/2002 determinar que “Obrigam a pessoa jurídica os
atos dos administradores, exercidos nos limites de seus poderes definidos no
ato constitutivo”, não se pode fazer uma interpretação literal desse
dispositivo, concluindo, pela lógica, que a pessoa jurídica nunca será
responsabilizada pelos atos praticados, com excesso de poder, por seus
administradores.
De qualquer forma, quando
imputada a responsabilidade civil do administrador, em razão da prática de ato
com excesso de poder, deve ficar claro que, nesse caso, trata-se de uma
imputação direta da responsabilidade do administrador pela prática de ato
ilícito, e não da aplicação da disregard doctrine.
No mesmo sentido,
poder-se-á se concluir no que tange aos atos praticados com abuso de direito,
mediante a análise da Teoria dos Atos Ultra Vires.
Diferentemente dos atos
praticados com excesso de poder, os realizados com abuso de direito são os atos
praticados pelos administradores da pessoa jurídica alheios ao objeto social
dela. A pessoa jurídica, por intermédio de seus administradores, atua fora
daquilo que constitui o seu objeto e, portanto, conclui-se que ela não atuou.
Segundo a Teoria dos Atos Ultra
Vires, a pessoa jurídica apenas tem capacidade para se responsabilizar pelos
atos praticados que envolvam os fins para os quais foi constituída.
Consequentemente, ela não tem responsabilidade pelos atos praticados fora de
seu objeto social, ou seja, com abuso de direito.
Lado outro, da mesma forma
como foi pontuada a questão dos atos praticados com excesso de poder, pode
acontecer que os terceiros – de boa-fé - prejudicados com o ato praticado em
abuso de direito não percebam que o respectivo negócio jurídico realizado entre
ele e a sociedade, por intermédio de administradores, era alheio ao objeto
social da pessoa jurídica. Por isso:
[...] expressiva corrente
doutrinária bem como a jurisprudência têm se baseado na teoria da aparência
jurídica para resolver essas questões que se encontram no campo dos atos ultra
vires e dos atos cometidos com abuso de poder. De acordo com essa teoria,
devido à impossibilidade prática de terceiros conhecerem com exatidão as
dimensões dos poderes dos administradores, a sociedade responde perante
terceiros quando (i) houver tirado proveito; (ii) houver ratificado o ato; ou,
(iii) o ato atingiu terceiro de boa-fé.4
Portanto, com exceção da
possibilidade de se aplicar a Teoria da Aparência, os atos praticados pelos
administradores, em nome da sociedade, com abuso de direito, responsabilizarão
civilmente aqueles perante terceiros. Assim, reprisa-se que, nos termos da Teoria
dos Atos Ultra Vires, a imputação da responsabilidade civil dos
administradores, em razão de terem praticado ato alheio ao objeto da sociedade,
não se trata de aplicação da disregard doctrine.
Em suma, conclui-se que a
Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica não corresponde com a
imputação direta da responsabilidade civil de administradores de sociedade.
Referências
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³ VERÇOSA, Haroldo
Malheiros Duclerc. Curso de Direito Comercial. Teoria Geral das Sociedades – As
Sociedades em Espécie do Código Civil. São Paulo: Malheiros Editores. v 2,
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4 ZAITZ, Daniela. Responsabilidade
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Limitada, publicado na Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2000, v. 740, pp. 11/52.
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