sexta-feira, 27 de março de 2015

Imóveis Rurais sem Registro Imobiliário X Terras Devolutas

Pedro Augusto Soares Vilas Boas
Advogado associado de Escritório Homero Costa Advogados
Marina Assunção Rocha
Estagiária do Homero Costa Advogados
*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 46 em 31/01/2013

Dentre os requisitos essenciais para a propositura da ação de usucapião previstos no Código de Processo Civil, está o dever do autor de requerer a citação daquele em cujo nome estiver registrado o imóvel usucapiendo.
Todavia, a legislação processual não trata expressamente das hipóteses de imóveis sem registro imobiliário, embora tenham sido, por longa existência, destinados aos fins e aos interesses particulares. Nesse contexto, surge polêmica acerca da origem ou natureza jurídica de tais bens.


A propriedade privada no Brasil teve sua origem no sistema de capitanias hereditárias, sendo todo o território, até então explorado, dividido em 14 capitanias. Cada donatário tinha o direito de distribuir suas terras incultas ou abandonadas em forma de sesmarias, passando o domínio do Estado para o donatário e, posteriormente, para o sesmeiro. Caso o donatário ou o sesmeiro não cumprisse as condições impostas para a utilização da terra, deixando-a ociosa, improdutiva ou inaproveitada, a doação se tornaria sem efeito, sendo a terra devolvida imediatamente para a Coroa, passando, então, a integrar as terras devolutas.

No entanto, há uma tendência antiga de ocupação do território brasileiro por sesmeiros com concessões caducas ou, até mesmo, por posseiros sem qualquer título.

Nesse contexto, considerando que um imóvel, embora ainda não registrado, tenha sofrido o domínio apenas de particulares para atender aos seus próprios interesses, sejam eles residenciais, produtivos ou mercantilistas, verifica-se que sua função social nunca foi voltada para interesse público.

São públicos os imóveis cuja função social é voltada para o interesse público e, particulares, quando a função é voltada para interesses privados.

Nélson Rosenvald (2006) defende posição que se revela tendência decisória:

“São reputadas res nullius (coisas de ninguém) ou terras adéspotas; portanto, bens excluídos da propriedade pública e apropriáveis pelo particular. Caberá ao Poder Público elidir a presunção relativa, provando que o bem em questão sofreu processo discriminatório – judicial ou administrativo -, antes de o particular haurir o prazo da usucapião (Lei n° 6.383/76)[1]”.

Conforme a doutrina civilista, confirmada pelo STJ, a presunção milita em favor do particular, sendo o ônus da prova do poder público. Nesse sentido, seguem julgados do STJ:

AGRAVO DO RECURSO ESPECIAL - DIREITO DAS COISAS. USUCAPIÃO. ILHA COSTEIRA. CONCEITO. IMPROPRIEDADE DA VIA ELEITA. TERRA PÚBLICA. ÔNUS PROBATÓRIO QUE RECAI SOBRE O ESTADO. 1. O exame do que seria"ilha costeira" somente encontra sede própria em recurso extraordinário. Diante da inadmissão do recurso extraordinário na origem, aplica-se a Súmula n.º 126/STJ. 2. Não havendo registro de propriedade do imóvel, inexiste, em favor do Estado, presunção iuris tantum de que sejam terras públicas, cabendo a este provar a titularidade do bem. Caso contrário, o terreno pode ser usucapido. 3. Agravo regimental improvido (STJ. Min.Luis Felipe Salomão – 1140 - AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL 597623/SC 2003/0176718-0. D.p. 08.02.2010 – grifou-se).
RECURSO ESPECIAL - CIVIL. USUCAPIÃO. ALEGAÇÃO, PELO ESTADO, DE QUE O IMÓVEL CONSTITUI TERRA DEVOLUTA. A ausência de transcrição no Ofício Imobiliário não induz a presunção de que o imóvel se inclui no rol das terras devolutas; o Estado deve provar essa alegação. Precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial não conhecido. (STJ. Min. Ari Pargrndler – 1104 - REsp 113255/MT RECURSO ESPECIAL 1996/0071431-2.p. 89.  D.p. 08.05.2000 – grifou-se

Nesse mesmo sentido, é entendimento do STF:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO - TERRAS DEVOLUTAS. USUCAPIÃO. - A CONDIÇÃO DE TERRA DEVOLUTA NÃO É SIMPLESMENTE DECORRENTE DO FATO DE OMISSÃO DO REGISTRO IMOBILIÁRIO DA GLEBA USUCAPIENDA EM NOME DE PARTICULAR.RECURSO EXTRAORDINÁRIO NÃO CONHECIDO. (STF. Min. Rafael Mayer. RE 90985 / RJ – RIO DE JANEIRO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. D.p. 20.02.1981 – grifou-se).

Portanto, verifica-se que é ônus do Poder Público constituir prova de que são devolutas as terras não registradas. Para tanto, o Estado tem de recorrer ao processo discriminatório, que visa a distinguir as terras públicas das particulares, podendo, inclusive, caso o título de propriedade tenha sido ilegítimo, anulá-lo. Veja-se:

RECURSO ESPECIAL - PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DISCRIMINATÓRIA. PONTAL DO PARANAPANEMA. ACÓRDÃO RECORRIDO. OMISSÃO. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO.NÃO-CONHECIMENTO. EXISTÊNCIA DE INTERESSE DA UNIÃO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA. REGULARIDADE DA CITAÇÃO. SÚMULA 7/STJ. LEGISLAÇÃO ESTADUAL. NÃO-CONHECIMENTO. REGISTROS PÚBLICOS. PRESUNÇÃO RELATIVA. PROVA EMPRESTADA. CABIMENTO. DOCUMENTO FALSO. COMPROVAÇÃO DE POSSE. IMPOSSIBILIDADE. USUCAPIÃO COM BASE EM LEGISLAÇÃO ESTADUAL. INVIABILIDADE. SÚMULA 340/STF. (...) 3. A Ação Discriminatória é o procedimento judicial adequado para que o Estado comprove que as terras são devolutas, distinguindo-as das particulares. As provas a serem produzidas referem-se a eventual domínio privado na área, nos termos do art. 4º da Lei 6.383/76. (...) 13. Não comprovada a posse, inviável o reconhecimento de usucapião, qualquer que seja o fundamento jurídico alegado (legislação federal ou estadual). De qualquer forma, o STF, nos processos que sustentam a Súmula 340 daquela Corte ("Desde a vigência do código civil, os bens dominicais, como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião"), entendeu que inexiste usucapião de imóveis públicos decorrente de legislação estadual, ainda que se trate de terras devolutas pertencentes ao Estado (RE 4.369/SP, j. 21.9.1943). Incabível, assim, a pretensão de usucapião extraordinário (e de desnecessidade de comprovação de justo título) com base no Decreto-Lei de SP 14.916/1945. 14. Recurso Especial de Wilson Rondó Júnior e outros não conhecido. Recurso Especial de Ponte Branca S/A e outro parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. Recursos Especiais de Antônio dos Santos Vardasca, Willian Branco Peres e outros conhecidos e não providos. (STJ, Min. Herman Benjamin. REsp 617428 / SP RECURSO ESPECIAL 2003/0225681-1. D.p. 27.04.2011 - grifou-se).

O processo discriminatório teve sua origem relacionada com a Lei de Terras de 1.850, primeiro texto legal a cuidar do instituto no Brasil.

Segundo Pereira (2003)[2], o processo discriminatório, que pode ser administrativo ou judicial, é uma forma de identificação técnica da área, visando determinar se a terra é realmente pública e, caso positivo, propriedade de qual ente federativo.

Tal processo, caso judicial, deslocará para seu juízo todas as demandas existentes que tenham por objeto o mesmo imóvel.

A ação discriminatória é uma ação pública, sendo que somente o Poder Público, por meio de seus entes, terá legitimidade ativa para propô-la pelo rito sumaríssimo.

Portanto, somente as terras devidamente discriminadas poderão ter destinação pelo Poder Público. Consequentemente, somente estas terras poderão ser consideradas devolutas.

Em tal situação, é importante destacar que a jurisprudência já superou a polêmica no sentido de que as terras devolutas são terras públicas e, portanto, não há a possibilidade de serem usucapidas, pois sofreriam limitação pelo princípio da imprescritibilidade, por força da determinação do parágrafo único do art. 191 da CF/88.

Neste sentido:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL - PROCESSUAL CIVIL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO DIRETA. DISCUSSÃO ACERCA DO DOMÍNIO. ART. 34 DO DL. 3.365/41. TERRAS DE FRONTEIRA. PARANÁ. (...) II - Os bens públicos imóveis da União não podem ser adquiridos por usucapião (C.C, art. 67; Dec. 22.785/33; Decreto Lei 9.760/46, art. 200) ressalvados os caos de praescriptio longis simi temporis, a de 40 consumado antes de 1.917, e os do art. 5ª, "e", do Decreto Lei 9.760/46. III - A lei 2.437/55, como disposição geral, não alterou o prazo de 20 anos da disposição especial do art. 5º, "e" do Decreto Lei nº 9.760/46".(STF - ACOr. 132/MT. Rel. Min. Aliomar Baleeiro, DJ. 09.11.1973)

Assim, confirma Denderá Haydeé dos Santos (2001)[3] que, sendo as terras devolutas bens públicos, estas nunca foram e nunca serão sujeitas às leis civis, portanto, à usucapião. Dessa forma, inclusive a modalidade de usucapião especial, previsto constitucionalmente, não admitiria que fossem objetos bens públicos.

Em suma, verifica-se a possibilidade de se usucapir imóvel não registrado, resguardado o direito do poder público de reivindicar esse bem, caso o considere devoluto, por resultado de um procedimento discriminatório.
Na hipótese de o particular exercer a posse sobre imóvel não registrado, considerado terra devoluta por meio do procedimento discriminatório, caberá a ele requerer a legitimação de sua posse, administrativamente, com base em lei própria de cada estado da federação.



[1]FARIAS, Cristiano Chaves e ROSENVALD, Nelson. Direitos Reais. Editora Lumen Juris. 3ª Edição. Página 274-287. Rio de Janeiro, 2006.
[2]PEREIRA, José Edgard Penna Amorim. Perfis Constitucionais das Terras Devolutas. Editora Del Rey. Belo Horizonte, 2003.
[3]SANTOS, Denderá Haydeé. Terras Devolutas: terras públicas das sesmarias ao estatuto da cidade. (Tese). UFMG. Belo Horizonte, 2001.

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