Ricardo Victor Gazzi Salum
Sócio do Homero Costa Advogados
Moema Campos de Oliveira Zocrato
Advogada Associada do Escritório Homero Costa Advogados
*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 46 em 31/01/2013
A pretensão nas ações reipersecutórias, que tem como fundamento o caput do artigo 1228 do Código Civil, deve ser dirigida contra aquele que está na posse injusta da coisa, não importando se esta posse é de boa ou de má-fé.
Existem situações em que este possuidor não pode ser identificado de forma precisa, obstando, em tese, o processamento da demanda. Isso ocorre com frequência em casos nos quais a “coisa” diz respeito a imóvel ocupado de forma ilegal, por múltiplos possuidores.
Como em toda demanda judicial, para que a sentença produza seus efeitos, exige-se a citação válida pessoal, ou a citação feita na pessoa de procurador legalmente autorizado (art. 215 do CPC). Fundamenta-se esta norma nos princípios constitucionais da ampla defesa e devido processo legal. Para possibilitar a citação nestes moldes é que o art. 282, II, do CPC exige a qualificação do réu.
Não se admite em nosso sistema processual a citação genérica, em que o oficial de justiça afirme, por exemplo, ter citado todos os ocupantes da área, sem designá-los. Tampouco pode o autor definir como réus “todos os ocupantes da área litigiosa”[1].
Contudo, não parece justo que o direito do autor de acesso à justiça, também constitucional, seja limitado por esta impossibilidade de qualificar os réus (princípio da inafastabilidade da jurisdição).
Necessário, portanto, encontrar uma solução processual que viabilize a demanda e, ao mesmo tempo, garanta que aqueles que deverão sofrer os efeitos da sentença sejam devidamente citados.
Poder-se-ia cogitar da possibilidade de realizar a citação por edital. O art. 231 do CPC trata das taxativas hipóteses em que é possível esta modalidade de citação ficta, que constitui as exceções à regra do citado art. 215 do CPC:
Art. 231. Far-se-á a citação por edital:
I - quando desconhecido ou incerto o réu;
II - quando ignorado, incerto ou inacessível o lugar em que se encontrar;
III - nos casos expressos em lei.
(...)
Segundo Humberto Theodoro Júnior, a hipótese do inciso I “é comum naqueles casos em que se devem convocar terceiros eventualmente interessados, sem que se possa precisar de quem se trata, com exatidão (usucapião, falência, insolvência etc).” O desconhecimento é subjetivo, ignora-se a pessoa do réu. A seu tempo, no caso do inciso II, o desconhecimento é objetivo. Conhece-se o réu, mas desconhece-se sua localização[2].
Não obstante o caso em análise – múltiplas pessoas de impossível individualização ocupando a coisa em litígio - não se enquadre, na visão da doutrina, em hipótese de citação por edital, esta tem sido a posição adotada pela jurisprudência.
Veja-se abaixo os seguintes julgados do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG):
PROCESSUAL CIVIL - IMISSÃO NA POSSE - LEGITIMIDADE PASSIVA - POSSUIDORES - PROVÁVEL INVASÃO - CITAÇÃO POR EDITAL - INC. I DO ART. 231 DO CPC - POSSIBILIDADE. Deve ser deferido pedido de intimação por edital, nos autos da ação de imissão na posse, se impossibilitada a identificação dos possuidores. (TJMG - 3ª Câmara Cível. Des. Rel. Manuel Saramago. d.p. 30.10.2009. Agravo de Instumento n° 1.0016.07.063952-7/003)
AGRAVO DE INSTRUMENTO - PEDIDO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE - LIMINAR INTEGRALMENTE CUMPRIDA - PERDA PARCIAL DE OBJETO DO AGRAVO - RÉUS INOMINADOS -CITAÇÃO POR EDITAL - LEGALIDADE - AGRAVO CONTRA DESPACHO DE MERO EXPEDIENTE - NÃO CABIMENTO - REQUISIÇÃO DE FORÇA POLICIAL PARA SALVAGUARDAR A POSSE DA TERRA - IMPOSSIBILIDADE. Se demonstrado que a liminar de reintegração de posse oportunamente deferida vem sendo integralmente cumprida após o julgador de 1o grau ter tomado providências nesse sentido, deve ser reconhecido que o agravo perdeu o objeto na parte em que requereu fosse observada a liminar e determinada a reintegração. Impõe-se reconhecer a legalidade do ato decisório agravado que determinou a citação por edital dos réus inominados, em observância ao disposto no art. 231, I, do CPC,providência esta que pode ser tomada a qualquer tempo enquanto não concluída a fase de conhecimento. A manifestação judicial que consiste em mero despacho, sem qualquer carga decisória, não cabe ser atacada por meio de agravo de instrumento. Não se olvida que o possuidor tem o direito de buscar a proteção judicial de sua posse e requisitar força policial toda vez que a mesma for esbulhada ou turbada. No entanto, exigir que um destacamento policial fique de prontidão, com vistas a salvaguardar a posse da terra, extrapola a função da corporação policial. (TJMG - 9ª Câmara Cível. Des. Rel. Osmando de Almeida. d.p. 27.11.2007. Agravo de Instrumento n° 7361484-41.2002.8.13.0024)
Os julgados acima transcritos seguiram entendimento já esposado pelo EgrégioSuperior Tribunal de Justiça (STJ), em acórdão assim ementado:
“REINTEGRAÇÃO DE POSSE. IMÓVEL INVADIDO POR TERCEIROS. IMPOSSIBILIDADE DE IDENTIFICAÇÃO DOS OCUPANTES. INDEFERIMENTO DA INICIAL. INADMISSIBILIDADE. - Citação pessoal dos ocupantes requerida pela autora, os quais, identificados, passarão a figurar no pólo passivo da lide. Medida a ser adotada previamente no caso. - Há possibilidade de haver réus desconhecidos e incertos na causa, a serem citados por edital (art. 231, I, do CPC).Precedente: REsp n. 28.900-6/RS. Recurso especial conhecido e provido.” (REsp 362365; Relator: Ministro Barros Monteiro; DJ 2/05/2005).
Contudo, como se observa da ementa, antes de se proceder à citação ficta, deve o autor diligenciar para promover a citação pessoal dos réus. Transcrevem-se trechos do acórdão que demonstram como deve o autor proceder:
“Entretanto, assiste razão à recorrente ao impugnar o indeferimento da peça vestibular. Primeiro, porque, ao promover a emenda da petição inicial, requerera ela a citação pessoal dos ocupantes do imóvel (fl. 40). Era essa, pois, a primeira medida a ser adotada no caso em exame: a expedição do mandado citatório quando seriam identificados os ocupantes do imóvel, com a menção dos limites da área objeto do litígio, conforme preconizado pelo MM. Juiz de Direito a fls. 27.
As pessoas assim identificadas passariam a figurar no pólo passivo do litígio. Depois, caso não fosse possível a identificação de tais ocupantes, justificava-se a citação edital, na linha do que reza o art. 231, I, do Código de Processo Civil, providência esta também pleiteada pela autora (fl. 40)”.
Ou seja, antes de pretender a citação por edital, deve-se buscar a citação pessoal dos réus, que poderão ser qualificados pelo próprio oficial de justiça, simultaneamente ao ato citatório.
Para tanto, a fim de auxiliar nos trabalhos do oficial, poderá o interessado “apresentar os elementos de que tenha conhecimento, e declinar ao juízo os demais elementos que tornem possível a identificação do demandado (como um apelido, uma característica física e assim por diante)”. [3]
Ademais, deverá o autor descrever de forma precisa a coisa, pois é ela que possibilitará a identificação pelo meirinho de todas as pessoas que estejam ocupando a área.[4]
Somente depois desta diligência e não tendo sido possível qualificar os possuidores, ou mesmo na impossibilidade de se individualizar alguns deles, procede-se à citação edilícia.
Em suma, como demonstrado, a extrema dificuldade ou até mesmo impossibilidade de qualificar os possuidores que serão réus na ação reipersecutória, não pode impedir o prosseguimento do feito.
Não se olvide, contudo, de que o risco de ter uma citação considerada inválida também não é vantajosa para o autor, ante a nulidade da sentença proferida em processo eivado de tal vício. O autor deve, portanto, lançar mão de todos os recursos possíveis para qualificar os réus, antes de recorrer à citação editalícia.
[1] CUNHA, Sérgio Sérvulo da. “Ação Possessória contra Réu Inominado” – in Revista de Processo – vol. 94. São Paulo. 2000. p. 132.
[2] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. V. I. 50ª Ed. Forense: Rio de Janeiro, 2009. p. 267.
[3] CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 19ª Ed. Lumen Juris: Rio de Janeiro, 2009. p. 307
[4] SOUZA, Adriano Stanley Rocha. “A formação do processo nas ações reipersecutórias multitudinárias: a citação de réus inominados na petição inicial”. Revista Forense, Belo Horizonte, v. 254, p. 54-66, 2004.
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