sexta-feira, 27 de março de 2015

Considerações sobre o Polêmico Instituto da Desapropriação Privada

Moema Campos de Oliveira Zocrato
Advogada Associada do Escritório Homero Costa Advogados
*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 45 em 08/11/2012


Embora inovadora em nosso ordenamento, a ideia trazida pelo Código Civil de 2002 em seu artigo 1228, §§ 4º e 5º, já existia na Roma Antiga. Com efeito, a sexta tábua da Lei das XII Tábuas estabelecia que:

“não cabia pretensão reivindicatória de madeira furtada, se utilizada na construção de uma casa ou na sustentação de uma vinha, ou seja, se empregada de forma produtiva. Cabia tão-somente pretensão indenizatória contra aquele que utilizou coisa que não lhe pertencia.”¹


Ou seja, atribuía-se o valor à coisa pela sua utilização. Também o polêmico instituto da desapropriação privada valoriza a posse tida como posse-trabalho, expressão cunhada por Miguel Reale.²

A visão individualista da propriedade não é acolhida no nosso sistema jurídico. São vários os dispositivos constitucionais que consagram, direta ou indiretamente, a função social da propriedade. Como exemplo, o art. 5º, inciso XXIII; art. 170, III; art. 182, §2º, etc. Ademais, toda a ordem infraconstitucional deve se adequar não apenas para ficar emconsonância com a Constituição, mas também para contribuir na efetivação dos objetivos nesta traçados.

Mas, como bem observa Ascensão, as intervenções no direito de propriedade não podem partir da concepção de que esta se esgota na função social, uma vez que a autonomia pessoal ainda é o objeto primário da atribuição de bens. O fundamento do direito de propriedade é a satisfação de necessidades existenciais. Sendo assim, as intervenções devem ser feitas com prudência, devendo a lei prever casos em que os titulares da propriedade incontestavelmente se desviaram do atendimento ao preceito constitucional, excedendo os limites, tanto positivos quanto negativos, de seu direito.³

Trata-se a propriedade de “um munus, um poder que se exprime simultaneamente em direito e dever, sendo, pois, imprescindível à coexistência do interesse do proprietário e o interesse social” 4.

Seguindo essa concepção é que o direito das coisas vem sofrendo constantes evoluções. Contudo, a desapropriação privada é instituto que, mesmo após quase dez anos de vigência do Código, causa estranheza, não só pela inovação do que determina, mas também pela forma como a norma foi redigida, trazendo conceitos indeterminados como requisitos. A utilização destas “cláusulas abertas” pelo legislador dá ampla margem interpretativa ao juiz.  Justifica Loureiro:

“seguiu o legislador típica tendência do direito contemporâneo, utilizando-se de conceitos abertos para permitir ao juiz usar de pensamento tópico, de solução do caso concreto, à vista de peculiaridades que se apresentem”(...) 5.

Assim, exigem uma maior atividade interpretativa do Juiz os conceitos: “extensa área”, “obras e serviços de interesse social e econômico relevante”, “considerável número de pessoas.

De acordo com o referido autor, o conceito “extensa área” deve ser interpretado conforme sua destinação e localidade.

A seu tempo, quanto ao requisito realização de “obras e serviços de interesse social e ecônomico relevante”, Georges Abboud afirma que o principal escopo da função social da propriedade, fundamento do instituto, é propiciar moradia.6 Inconteste a relevância da atribuição da propriedade para assegurar a posse exercida para este fim, mas não se pode olvidar que o dispositivo legal também abrange o interesse econômico relevante, permitindo-se cogitar de outras hipóteses de cabimento da aplicação da norma.

Por fim, o requisito “considerável número de pessoas” deve ser analisado juntamente com os demais, afinal, foge à finalidade do instituto atribuir a um determinado grupo de pessoas a propriedade de área muito superior ao que seria necessário para a realização das relevantes obras ou serviços por ele realizados.

Quanto à natureza jurídica do instituto, é possível encontrar algumas divergências. O entendimento majoritário é que, de fato, cuida-se de mais uma modalidade de desapropriação, porém privada, uma vez que o particular perde seu imóvel para outros particulares, e não para o Estado.7

Por fim, a respeito da indenização devida ao proprietário, podem ser suscitadas duas questões: o que se entende por “justa indenização”? E quem tem a obrigação de indenizar?

Quanto à primeira indagação, Marcelo de Oliveira Milagres entende que “o cálculo da indenização tem que considerar a relevância da omissão do proprietário-particular e a funcionalidade atribuída à coisa pelos possuidores-moradores8.” Cita ainda o autor o entendimento semelhante de Fábio Konder Comparato: “ressarcir integralmente aquele que descumpre o seu dever fundamental de proprietário é proceder com manifesta injustiça, premiando o abuso9”.

A partir, então, do valor do uso é que se deve estabelecer o quantum indenizatório.

Já a respeito da segunda indagação, quem seria o titular da obrigação de indenizar, podem ser encontrados entendimentos distintos.

Miguel Reale entende que a contrapartida indenizatória deve ficar a cargo dos possuidores.10  No mesmo sentido foi aprovado o enunciado 84 da Jornada de Direito Civil de 2002: “A defesa fundada no direito de aquisição com base no interesse social (art. 1.228, §§ 4º e 5º, do novo Código Civil) deve ser argüida pelos réus da ação reivindicatória, eles próprios responsáveis pelo pagamento da indenização.”11

Ressalve-se que a propriedade somente se transmitirá após o pagamento efetivo da indenização, conforme entendimento esposado pelo enunciado 241, da III Jornada de Direito Civil. Explica Luís Paulo Cotrim Guimarães que, embora a sentença seja válida, ela conterá uma condição suspensiva, pela qual seus efeitos somente ocorrerão após o pagamento do “justo preço”.

E, enquanto não cumprida a condição, o proprietário tem tão somente, a posse indireta do imóvel, o que, segundo o autor,

“não poderá perpetuar-se no tempo, sob pena de o proprietário ver-se despojado, indefinidamente, da posse direta do bem. Assim, caso não seja efetivada a mencionada indenização no lapso de tempo fixado pelo juiz na sentença, deverá o autor da demanda ser imitido na posse do bem”. 12

Conforme demonstrado, em que pese a ideia de desapropriação privada não ser novidade, e apesar da ampla discussão acerca do instituto desde a época em que o Código Reale era um projeto, os questionamentos suscitados acerca da desapropriação judicial são muitos, e estão longe de serem respondidos de forma pacificada. Até porque não tem sido invocada sua aplicação - conclusão que se extrai da busca frustrada por julgados atinentes à matéria - o que certamente incentivaria maiores pesquisas no assunto e colocaria a norma em destaque.

Ainda assim, os §§ 4º e 5º do art. 1.228 Código Civil estão em vigor, impondo-se a necessidade de maior debate sobre a desapropriação judicial indireta.
__________
1PEZZELLA, Maria Cristina Cereser. Propriedade privada no direito romano. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1998. p. 167-168 apud MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à Moradia: Direito Especial de Personalidade?  Belo Horizonte, Minas Gerais: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. Tese (doutorado). p. 151
2REALE, Miguel. O projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986.
3ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil - Reais. 5ª Ed. Coimbra: Coimbra, 1993. p. 201.
4MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à Moradia: Direito Especial de Personalidade?  Belo Horizonte, Minas Gerais: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. Tese (doutorado) p. 60 apud CHAMOUN, Ebert. Arquivos do Ministério da Justiça. Rio de Janeiro, ano 32, n.134, abr/jun. 1975. p.1.
5LOUREIRO, Francisco Eduardo inCódigo civil comentado: doutrina e jurisprudencia. Coord. Cezar Peluso. 4ª Ed. Barueri, SP: Manole, 2010. p. 1204
6ABBOUD, Georges. Usucapião urbano coletivo e o art. 1.228 do Código Civil de 2002. Revista de Direito Privado, n.36 Outubro-Dezembro de 2008. Editora Revista dos Tribunais. p. 188
7ABBOUD, Georges. Usucapião urbano coletivo e o art. 1.228 do Código Civil de 2002. Revista de Direito Privado, n.36 Outubro-Dezembro de 2008. Editora Revista dos Tribunais. p. 195 apud PENTEADO, Luciano de Camargo. Direito das coisas. São Paulo: Ed. RT, 2008, p. 250
8MILAGRES, Marcelo de Oliveira. Direito à Moradia: Direito Especial de Personalidade?  Belo Horizonte, Minas Gerais: Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais, 2009. Tese (doutorado). p. 173
9COMPARATO, Fábio Konder. Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade. Revista do Centro de Estudos Judiciários, Brasília, v.1, n.3, set./dez. 1997. p.97 apud Marcelo Milagres p. 174
10REALE, Miguel. O projeto de código civil: situação atual e seus problemas fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1986. p. 54.
11AGUIAR JÚNIOR., Rui Rosado de (Org.). Jornada de Direito Civil.  Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2003. p. 65
12AGUIAR JÚNIOR., Rui Rosado de (Org.). III Jornada de Direito Civil.  Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2005. p.319

Nenhum comentário:

Postar um comentário