Daniela Villani
Bonaccorsi
Advogada Criminalista, Mestre
em Direito Processual Penal. Professora de Direito Penal no curso de graduação
da PUC - Minas e UNI-BH; Professora no curso de Pós Graduação no IEC –
Instituto de Educação Continuada - da PUC/MG ; sócia de Homero Costa Advogados
*publicado
originalmente no Boletim Jurídico N.º 08, em 24/10/2008
A carta Magna de 1988, marca o rompimento da sociedade com
uma antiga ordem caracterizada por um longo processo histórico de cunho
autoritário e sobretudo, marca “o reconhecimento da existência de um núcleo
inviolável de direitos, constituído pelos direitos fundamentais, cuja tutela é
a prioridade máxima do Estado e que não podem ser suprimidos nem mesmo a
pretexto de atender à vontade da ampla maioria.¹”
A proposta do denominado direito penal
constitucional é conseqüência direta dos relacionamentos entre o indivíduo e o
Estado, para que esse seja meio para a tutela da pessoa humana, dos seus
direitos fundamentais de liberdade e de segurança social.
O modelo penal garantista foi recebido representando o
fundamento interno ou jurídico da legitimidade da legislação e da jurisdição
penal³, vinculando normativamente a coerência com princípios
constitucionalmente reconhecidos e limitando o poder com fins garantísticos4.
Ocorre que, nos anos 60, as condutas e as atividades que
poderiam oferecer perigo aos bens jurídicos alastraram-se no sistema penal5.
Contemporaneamente, vivemos numa sociedade complexa e em contínua expansão, a
violência toma proporções cada vez maiores, onde se tem como pretexto um “direito
penal de riscos6”, caracterizado por uma excessiva
intervenção estatal, uma “legislação de emergência” sem o estabelecimento de
princípios axiológicos ou um modelo garantista, mas o desenvolvimento “hipertrófico”7
do direito penal8, com tendências intervencionistas e preventivas.
Hoje, há uma proliferação de tipos penais classificados como
crimes de perigo abstrato9, que passaram a ser característica do
moderno direito penal10. Recorre-se ao direito penal como forma de
prevenção para os riscos de uma sociedade moderna11, justifica
FERRAJOLI:
“Temos assistido a uma crescente antecipação de tutela, mediante a configuração de delitos de perigo abstrato, com caráter hipotético e muitas vezes improvável do resultado lesivo e pela descrição aberta e não taxativa da ação.12”
Com o intervencionismo estatal do século XX, dentre as
exigências da sociedade no campo da proteção dos seus valores fundamentais e
precauções13 na produção de risco, apontou-se para a criação de um
sistema penal econômico14, que a fim de obter amparo com o núcleo de
sua formulação na Constituição Federal, lastreado pela efetivação de uma
conseqüente política criminal e dogmática jurídico-penal15.
Com efeito, vale ilustrar, dentre os delitos contra a Ordem
Econômica e Financeira a Lei nº 7.492/86, que define os crimes contra o sistema
financeiro nacional e trata de muitas figuras classificadas como crimes de
perigo abstrato16.
Por exemplo, no seu art. 2º, expõe a conduta de “importar,
reproduzir ou, de qualquer modo, fabricar ou pôr em circulação sem autorização
escrita da sociedade emissora, certificado, cautela ou outro documento
representativo de valor imobiliário”. Ou seja, há uma sanção, independentemente
da produção de qualquer resultado, com mera presunção do perigo17.
A Constituição Federal ampara, sim, em seu art. 173, regras e
princípios gerais da atividade econômica, estipulando a necessidade de
responsabilização por atos que venham a ser praticados contra a ordem econômica
e financeira18, mas, constata-se que há, em sua maioria19,
tipos penais que trazem em seu conteúdo hipóteses em que não se submete o
conteúdo a perigo concreto. Ora, dentre os princípios constitucionais penais
garantísticos, na atualidade do modelo penal deve haver fundamentação no
princípio da ofensividade do bem jurídico, que parte da idéia de que não há
crime sem ofensa, lesão ou perigo concreto de lesão.
Considerando-se o modelo garantista, desde já, vale afirmar
que, não é suficiente a adequar a conduta punitiva à forma, mas “asseverar a
relevância penal dos comportamentos que se mostrem realmente, ao menos em
termos potenciais, lesivos ao bem-jurídico.”20 Se o
direito penal visa à tutela do cidadão e minimação da violência, as proibições
penais justificadas devem ser necessárias. Impende levar em consideração que
estão reconhecidos em nível normativo privilegiado não somente os clássicos
princípios liberais, senão também outros novos21, como é o caso do
princípio da necessária ofensividade no direito penal. “A necessária
lesividade do resultado, qualquer que seja a concepção que dela tenhamos,
condiciona toda justificação utilitarista do direito penal como instrumento de
tutela e constitui seu principal limite axiológico.”22
Há ofensa ao Princípio da Ofensividade na incriminação de
condutas que não trazem a possibilidade concreta de dano, porque não basta uma
constatação meramente formalista do delito, mas uma relevância quando o bem
jurídico passa a ser concretamente afetado.
Ao compreender-se a fundamentação dos princípios
constitucionais penais e seu modelo garantista, analisando a excessiva criação
dos chamados crimes de perigo abstrato, busca-se demonstrar que a validade de
uma medida punitiva não depende apenas de requisitos formais.23
O sistema jurídico-penal não poderia, unicamente, fazer frente
às realidades da sociedade de perigo ou dos modernos riscos da vida, em razão
da intervenção efetiva do Direito Penal significar o sacrifício de garantias
essenciais. Nesse sentido:
“A punição por perigo abstrato significa uma sanção fundamentada apenas no desvalor da ação, independentemente da presunção de qualquer resultado, pois é a mera presunção do perigo. A intervenção penal nessa seara deve ser evitada, porque fundamentada em mera desobediência à norma, o que, além de contrariar a própria razão de ser da norma penal (...) é cruel e vedado pelo nosso Código penal que não admite crimes sem resultado.”24
Com o fundamento constitucional do direito penal, em
conformidade com o princípio da ofensividade dos bens jurídicos, o perigo
concreto constitui pressuposto à tipificação penal e“a sanção penal só se
justifica quando a conduta do agente tenha submetido o bem jurídico tutelado
penalmente pelo menos a um perigo real, concreto”.25
Assim, há de se questionar a validade dos crimes contra a
ordem econômica e tributária que não causem dano ou perigo de dano, com a maior
análise do modelo garantista penal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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cumprimento de dever legal. Porto
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2006.
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Direito Penal econômico como Direito Penal de Perigo. São Paulo, RT, 2006
TAVARES, Juarez E. X. Bien
Jurídico y función em Derecho penal. Buenos Aires: Hammurabi, 2004.
________________________
¹ BRODT, Luiz Augusto. Do estrito cumprimento de dever legal. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris, 2005, p.33.
² Diante da importância da
compreensão do bem jurídico, Brodt explica que “bem jurídico-penal é a relação de disponibilidade que um indivíduo
tem para um objeto.” BRODT, Luiz Augusto. Do estrito cumprimento de dever legal. op. cit., p.52. Corroborando tal definição, o
mesmo transcreve o conceito de Zaffaroni e Pierangeli, de que, “bem jurídico
penalmente tutelado é a relação de disponibilidade de um indivíduo com um
objeto, protegido pelo estado, que revela seu interesse mediante a tipificação
penal de condutas que o afetam.” BRODT, Luiz Augusto. Do estrito cumprimento de
dever legal. Op. cit., p.52.
³FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão- Teoria do Garantismo Penal. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 16.
4
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. Coimbra: Almedina. 6ª edição. P.51.
5
PEREIRA, Rui Carlos. O dolo de Perigo, Lisboa: LEX. 1995. p.22.
6
A expressão sociedade de risco foi cunhada em 1986, por Ulrich Beck. A
sociedade de risco é identificada “com o momento
de crise e de revisão, que manifesta seus efeitos deletérios e coloca em cheque
seus fundamentos”. JUNGES, José Roque. Evento Cristo e Ação Humana. Temas em fundamentais de ética teleológica. Coleção Theologia Publica 1. São Leopoldo:Unisinos. 2001. p.19.
7
O termo “hipertrofia” penal foi utilizado desde 1898, por Reinhart Franck
salientando o uso abusivo da pena. (LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre,
Sergio Antônio Fabris Editor, 2003. P 42).
8
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão- Teoria do Garantismo
Pena, op. cit., p. 12.
9
As condutas e as atividades perigosas do final do século XIX não são as mesmas.
A substituição da pessoa humana por máquinas, os movimentos sociais, as
mudanças econômicas tornaram-se a base da crise atual. As condutas e atividades
perigosas, sobretudo após a segunda guerra mundial, em especial a partir dos
anos 60, assumiram papel fundamental no sistema penal.
10
Em fundado receio Winfried Hassemer chama a atenção para o conceito de
“modernidade” no Direito Penal e a tendência de “modernizar” o Direito Penal,
“de ampliá-lo para um instrumento funcional de política interna e reduzir seus
limites clássicos(...)” HASSEMER, Winfried. Características
e Crises do Moderno Direito Penal. Revista
Síntese. Porto Alegre: vol. 18, fev/mar 2003. p.144.
11
MARQUES, Daniela Freitas. Perigo Proibido e Risco Permitido, 2005. 384f. Tese (doutorado em Ciências Penais)- Faculdade de
Direito, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, p.98.
12
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão- Teoria do Garantismo
Penal, op. cit., p. 436.
13
“O Princípio da precaução está ligado aos conceitos de afastamento de
perigo e segurança das gerações futuras, como também de sustentabilidade
ambiental de atividades humanas (...) A partir dessa premissa, deve-se também
considerar não só o risco iminente de uma determinada atividade como também os
riscos futuros(...)”. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Direito Ambiental: o princípio da precaução e sua aplicação judicial. Revista de Direito Ambiental. São Paulo: vol. 21, p.92/102, jan/mar.
de 2001. p.93
14
O Direito Econômico nasce do intervencionismo
estatal do século XX no domínio econômico. Ocorrera o surgimento do Direito
Econômico face uma nova realidade estatal econômica. com acontecimentos
fundamentais como a Primeira Grande Guerra 1914-18; a crise econômica de 1929
com a quebra da bolsa de New York, e a Segunda Grande Guerra 1939-45.
15
Em relação aos crimes que protegem a ordem econômica e tributárias,
classificados como crimes de perigo abstrato, pode-se citar como exemplo a Lei
nº 7.492/86, chamada de Lei dos Crimes de Colarinho Branco; Lei nº 8137/90 que
prevê os crimes contra a ordem econômica, tributária e relações de consumo.
16
No sistema jurídico-penal, a forma de expressão do perigo proibido ocorre por
meio dos tipos-de-ilícito de perigo, nos quais a vontade livre e consciente é
de trazer o risco e não o dano. Nos crimes de perigo abstrato, não há uma
probabilidade concreta de dano, mas somente um risco normativo: “Mientras que
los delitos de lesión se perfeccionan com la destrucción o menoscabo del ojeto
de la acción, em los delitos de peligro basta com que se origine uma situación
de riesgo. Así pues, el fundamento teleológico de la incriminación de los
delitos de peligro encuentra em la prevención de
males para bienes dignos de tutela.” CUESTA AGUADO. Paz M. de la. Respuesta Penal al Peligro Nuclear. Barcelona: PPU
Servicio de Publicaciones/Universidad de Cadiz, 1994, p.124.
17
BRODT, Luiz Augusto. Do estrito cumprimento de dever
legal, op. cit., p.113.
18
Art. 173 CF/88, §3º: “A lei reprimirá o abuso do poder
econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros.” (...) §5º: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade dos dirigentes da pessoa
jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a ás punições
compatíveis com a sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e
financeira e contra a economia popular.”
19
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal
supra-individual: interesses difusos. São Paulo:
RT, 2003, p.188.
20 SILVEIRA,
Renato de Mello Jorge. Direito Penal econômico como Direito
Penal de Perigo. op. cit., p.166.
21
PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito
penal: um estudo comparado. Trad. Gérson
Pereira Santos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1989. p.13.
22
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão- Teoria do Garantismo
Penal op. cit., p. 428.
23
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão- Teoria do Garantismo
Penal. op. cit., p. 330.
24
BRODT, Luiz Augusto. Do estrito cumprimento de dever legal. op. cit., p. 113.
25
BRODT, Luiz Augusto. Do
estrito cumprimento de dever legal. op.
cit., p. 114.
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