Daniela Villani Bonaccorsi
Advogada Criminalista, Mestre em Direito Processual Penal.
Professora de Direito Penal no curso de graduação da PUC - Minas e UNI-BH; Professora
no curso de Pós Graduação no IEC – Instituto de Educação Continuada - da PUC/MG ; sócia de Homero Costa
Advogados.
*publicado
originalmente no Boletim Jurídico N.º 05, em 11/08/2008
Contemporaneamente vivemos numa sociedade
complexa e em contínua expansão. A violência toma proporções cada vez maiores, onde
se tem como pretexto um “direito penal de riscos”[i],
caracterizado por uma excessiva intervenção estatal, uma “legislação de emergência”,
com a inúmera criação de leis mais severas, sem o estabelecimento de princípios
axiológicos ou um modelo garantista, mas o desenvolvimento “hipertrófico”[ii]
do direito penal[iii], com tendências intervencionistas e preventivas.
Exemplo dessa “realidade penal” é a recente
criada lei 11.705/08, tão discutida nas últimas semanas, que alterou diversos dispositivos
do Código Brasileiro de Trânsito (lei n.º 9.503/97).
Buscando estabelecer alcoolemia 0 (zero)
e de impor penalidades mais severas para o condutor que dirigir sob a influência
do álcool, entrou em vigor uma lei que, antes de tudo, é exemplo de ofensa a princípios
e garantias fundamentais e, com marcas de autoritarismo e insegurança jurídica.
A mencionada lei, trata do crime de embriaguez
no volante e da infração administrativa
de embriaguez ao volante.
O crime de embriaguez na condução de veículo automotor é previsto no
art. 306 do CBT: "Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com
concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas,
ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".
A pena prevista para esse crime é de seis meses a três anos, multa e suspensão ou
proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Já a infração administrativa de embriaguez ao volante, na redação dada
pela lei nº 11.705/08, é assim descrita: "Dirigir sob a influência de álcool
ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência".
Ou seja, uma mesma conduta pode caracterizar
tanto uma infração de trânsito quanto um crime de trânsito – basta que o motorista
esteja embriagado com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior
a 6 (seis) decigramas (ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa
que determine dependência).
Nesse caso, o envolvido, em tese, responderá,
absurdamente, tanto perante os órgãos de trânsito quanto perante a justiça criminal.
Caso a concentração seja inferior a 6 decigramas, o motorista responde apenas pela
infração administrativa.
Após os breves esclarecimentos, afirmamos
que o primeiro exemplo de autoritarismo presente na lei, é a obrigatoriedade no
uso do etilômetro. A obrigatoriedade do bafômetro atinge, a garantia constitucional
de que “ninguém pode ser obrigado a produzir prova contra sim mesmo”. Ratificando
tal entendimento[iv]:
"a partir da Carta
de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados
pelo Brasil", dentre eles a Convenção Americana de Direitos Humanos, que em
seu artigo 8º, II, g, estabelece que toda pessoa acusada de um delito tem o direito
de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem se confessar culpada, consagrando
assim o princípio segundo o qual ninguém está obrigado a produzir prova contra si
mesmo”[v] .
Ainda, dispõe a Constituição Federal (art.
5º, inciso LXIII) que "o preso será informado de seus direitos, ente os
quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada à assistência da família e de
advogado". Tal princípio, não só permite que o acusado ou aprisionado permaneça
em silêncio durante toda a investigação e mesmo em juízo, como impede que seja ele
compelido a produzir ou contribuir com a formação da prova contrária ao seu interesse.
"o direito ao silêncio,
diz mais do que o direito de ficar calado. Os preceitos garantistas constitucional
e convencional conduzem à certeza de que o acusado não pode ser, de qualquer forma,
compelido a declarar contra si mesmo, ou a colaborar para a colheita de provas que
possam incriminá-lo."[vi]
Obviamente deve o Estado trabalhar na
proteção de bens jurídicos fundamentais, mas, não se pode criar novas leis em detrimento
de garantias previstas constitucionalmente, o que tem ocorrido com a presente lei.
Em nome da segurança no trânsito, não se pode atingir o princípio constitucional
da presunção de inocência ou a liberdade de “ir e vir”.
Devem haver critérios na elaboração da
lei, e, obviamente, o principal deles, é o amparo constitucional. Devem, sim, as
autoridades buscarem soluções para o grande número de acidentes de trânsito, soluções
com observância da legalidade, segurança jurídica, e, por óbvio, razoabilidade.
Hoje, o sujeito comum, ético, moral e ciente de seus deveres, que ingere uma “taça
de vinho” com sua esposa num jantar, ou a mulher que pede como sobremesa um “bombom
de licor” podem se tornar criminosos? Onde está a razoabilidade? Onde está a segurança
jurídica que é uma das finalidades da lei?
Apesar do rol de garantias constitucionais,
a mencionada lei, no seu §3º, do art. 277 e art. 165 do Código de Trânsito ilustra:
“o motorista que se recusar a fazer o exame será punido com: multa e suspensão
do direito de dirigir por 12 meses”. As conseqüências previstas pela lei para
quem se recusa a se submeter ao bafômetro são as mesmas previstas para aquele que
é flagrado ao dirigir sob a influência de bebida alcoólica, infração (administrativa)
de trânsito do artigo 165 do CTB. É como se a lei, diante da negativa do motorista
em se submeter ao exame, "presumisse" seu estado de embriaguez, o que
também atinge outra garantia constitucional, a princípio do “in dúbio pro reo”,
aplicável, seja no âmbito criminal, seja no âmbito administrativo[vii].
Não obstante a letra da lei, o condutor
não está obrigado e a sua recusa não caracteriza confissão. Ademais, não poderá
ser constrangido a fazê-lo, nem tampouco ser autuado diante da recusa.
Fato é, no que diz respeito à prática
de crime, a negativa do exame do “bafômetro” jamais pode acarretar nenhum tipo de
conseqüência.
Não cabe, pela simples recusa, a prisão
do motorista e mais, o condutor pode se recusar a se submeter a qualquer exame,
seja o teste do bafômetro, seja qualquer outro procedimento previsto no artigo 277
do CBT, a exemplo de exames clínicos ou de sangue.
Tal afirmativa tem fundamento tanto na
citada garantia de “ninguém ser obrigado a produzir prova contra si mesmo”, no princípio
do “in dúbio pro reo”, que garante que no caso da ausência de provas robustas e
objetivas, deve o réu ser absolvido e, também, na garantia do estado de inocência.
Nesse sentido: "aos litigantes
em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados
o contraditório e a ampla defesa" (art. 5º LV), do que se conclui que, não
só no âmbito de um processo penal, mas diante de qualquer autoridade pública, tem-se
o direito a não cooperar na própria incriminação."[viii]
Assim, caso o condutor do veículo se negue
a participar de qualquer procedimento de avaliação de seu estado de embriaguez,
sequer caberia a condução coercitiva do motorista à delegacia de polícia ou a outro
local onde se poderia realizar um exame médico.
No âmbito administrativo, a interpretação
tem limites menores, no caso das conseqüências de apreensão da carteira e retenção
provisória do veículo, medidas administrativas, poderiam ser aplicadas de
imediato pela autoridade de trânsito no próprio ato de abordagem do motorista, mas,
somente mantidas com as garantias de prova, contraditório e presunção de inocência.
Em relação à retenção do veículo, vale
notar que, para a liberação, basta que o condutor solicite a outra pessoa que dirija
o automóvel em seu lugar. Pode ser um amigo que venha ao local a seu chamado ou
até mesmo um carona que o esteja acompanhando no momento.
A apreensão da carteira e a retenção do
veículo são as únicas medidas que poderiam ser aplicadas de imediato ao motorista
que se recusa a se submeter aos exames solicitados pela autoridade policial.
Mas, em qualquer caso de recusa, seriam
aplicadas as penalidades e medidas administrativas mencionadas acima.
Vale ilustrar decisão do Tribunal de Justiça
de São Paulo que, ratificou o direito de
se negar a fazer teste do bafômetro sem ter de pagar multa nem sofrer qualquer sanção
administrativa prevista pela lei seca. O salvo-conduto em habeas corpus preventivo
foi concedido, em liminar, pelo desembargador Márcio Franklin Nogueira. A ordem
permite, em tese, que o advogado não seja punido nem se estiver visivelmente bêbado.
Ainda, de acordo com a referida decisão[ix]:
“ninguém pode ser obrigado
a fazer provas contra si
mesmo -e o resultado do bafômetro pode ser usado pela polícia como prova contra
o motorista. "Ora, não se pode punir alguém, ainda que administrativamente,
pelo fato de exercitar direito constitucionalmente assegurado", escreveu o
magistrado.
Assim, não visa o breve estudo deixar
de aplaudir a intenção do estado, mas de alertar e lembrar os nossos direitos e
garantias fundamentais. É necessário que sejam fixados os limites agora para que
as inúmeras “blitz” não sejam em vão e que, ao contrário de apreenderem condutores
embriagados que geram perigo para suas vidas e as de terceiros, apreendam cidadãos
corretos e retos, que comeram “um bombom de licor” e que não oferecem nenhum perigo
à sociedade. Antes da Lei, estão os princípios constitucionais que norteiam todo
o ordenamento jurídico.
__________________________
[i]
A expressão sociedade de risco foi cunhada em 1986, por Ulrich Beck. A sociedade
de risco é identificada “com o momento de crise e de revisão, que manifesta seus
efeitos deletérios e coloca em cheque seus fundamentos”. JUNGES, José Roque. Evento Cristo e Ação Humana. Temas em fundamentais de ética teleológica. Coleção Theologia Publica 1. São Leopoldo:Unisinos. 2001. p.19.
[ii]
O termo “hipertrofia” penal foi utilizado desde 1898, por Reinhart Franck salientando
o uso abusivo da pena. (LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris Editor, 2003. P 42).
[iii]
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão- Teoria do Garantismo Penal, op. cit., p. 12.
[iv]
MARCÃO, Renato. Embriaguez ao volante, exames de alcoolemia e teste do bafômetro.
Uma análise do novo art. 306, caput, da Lei nº 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro).
Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1827, 2 jul. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11454>.
Acesso em: 10 jul. 2008.
[v]
PIOVESAN, Flavia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3. ed., São Paulo, Max Limonad, 1997, p. 254.
[vi]
STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos
e sua integração ao processo penal brasileiro, São Paulo, Revista
dos Tribunais, 2000, p. 125.
[vii] HONÓRIO,
João Batista. Da ilegalidade das prisões
com base em bafômetros. Disponível em <http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=63804.
Acesso em 08 jul.2008.
[viii]
Luchione, Carlo Huberth. Lei sobre álcool e trânsito. Disponível em < http://www.migalhas.com.br/mostra_noticia_articuladas.aspx?cod=64169. Acesso em 10 jul.2008.
[ix] Jornal
“O Povo”. São Paulo, 11.07.2008.
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