segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Pesquisa Clínica com Seres Humanos

Bernardo José Drumond Gonçalves

Advogado, especializando em direito processual pelo IEC – Instituto de Educação Continuada - da PUC/MG, Professor de Direito Civil da Unifenas-BH

*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 08, em 24/10/2008


Pode ser observado nos últimos anos uma crescente demanda do número de pesquisas clínicas com seres humanos. Estima-se que mais de dez mil estudos estão sendo realizados no Brasil, sendo que setenta por cento estariam focados em São Paulo¹.

Sabe-se que a Declaração de Genebra da Associação Médica Mundial compromete os médicos com as seguintes palavras: “A Saúde do meu paciente será minha primeira consideração” e o Código de Ética Médica Internacional declara que “um médico deve agir somente no interesse do paciente quando fornecer cuidados médicos que talvez possam prejudicar a condição física e mental do paciente”.

O bom senso do pesquisador de conciliar os procedimentos corretos e os princípios éticos com a oportunidade de uma evolução técnico-científica implica jamais colocar em detrimento a pessoa pesquisada diante das circunstâncias.

Tanto quem se submete à pesquisa quanto quem aguarda os avanços podem ser considerados como pacientes, em sentido estrito, sendo que ambos estão adstritos aos limites da medicina, mas o pesquisado é o meio pelo qual um fim poderá significar o avanço.

Cumpre verificar a real necessidade da utilização de seres humanos face à opção mais conveniente de se utilizar animais, seja para o descobrimento de curas, aprofundamento das práticas atualmente utilizadas, melhoria dos procedimentos profiláticos, diagnósticos terapêuticos ou, ainda, para entender a etiologia, assim como a patogênese da doença.

Isso, porque toda pesquisa apresenta um sério grau de risco iminente. Portanto, havendo uma alternativa suficientemente eficaz, não há razões para que pessoas sejam submetidas a tais procedimentos, pois o bem estar dos seres humanos envolvidos numa experiência científica deverá prevalecer sobre os interesses da ciência e sociedade.

Diante dessa concepção, só é aceitável uma pesquisa científica quando ela responde preliminarmente às conveniências do diagnóstico e da terapêutica do próprio experimentado, a fim de estabelecer sua saúde ou minorar seu sofrimento. Qualquer pesquisa sem as considerações desses interesses é condenável.

No que concerne à regulamentação vigente, há um rol de Códigos, Declarações, Leis, Resoluções, Portarias e regras internacionais de Boas Práticas Clínicas capazes de proporcionar um embasamento jurídico hábil a fim de evitar que equívocos nesse particular sejam cometidos.

Uma das mais antigas normatizações vigentes que tratam a respeito é o Código de Nuremberg (1947), que, diante das atrocidades experimentais em seres humanos ocorridos no período da Segunda Guerra Mundial tratou da relação ser humano e pesquisador, com o propósito de tornar o consentimento do paciente embasado num esclarecimento profundo, estabelecendo que as pessoas, ao aderirem a um projeto de pesquisa como objeto da mesma, deverão ser legalmente capazes de dar consentimento, exercendo livre direito de escolha sem qualquer intervenção de elementos de força, fraude, coação, astúcia ou constrangimento.

No entanto, considerando a pessoa “livre” para consentir, cabe ao médico, também, consentir em adotar os procedimentos padrões adequados, mesmo que com riscos possíveis, mas com  responsabilidade e comprometimento aliados ao escopo de se chegar à meta almejada, sem comprometer a vida do paciente.

Sob alguns pontos de vista, ao contemplar a experiência científica no ser humano, a Declaração de Helsinki (1964) e as “diretrizes internacionais propostas para a pesquisa biomédica em seres humanos”, percebe-se um aspecto claro da questão: a experiência é admissível somente quando representa ato médico, dentro da atenção médica. Isso significa que, no lugar de Comissão de Ética, ao lado do sujeito passivo da experiência, deve estar o seu médico assistente, como guardião competente, legítimo e confiável de sua saúde.

Se na experiência tudo tiver sido feito em conformidade com as deliberações do médico assistente, tudo terá sido feito em harmonia com os princípios básicos da Medicina, em nome do próprio paciente. Assim, uma experiência lícita e ética. Do contrário, ela constituirá violência, ao desconsiderar o “consentimento voluntário” do paciente, pelo que será insuficiente o acordo do paciente com a proposta da pesquisa, abrangendo seus riscos inerentes.

O Código de Ética Médica, em seu artigo 122, proíbe os médicos de participarem de alguma experiência com seres humanos, desde que seja com fins bélicos, políticos, raciais ou eugênicos. Portanto, essas investigações não podem ser instrumentos de exclusão ou eliminação de pessoas, mas justamente fazer com que a sobrevivência das mesmas se perfaça diante de patologias e métodos prejudiciais.

O resultado, por melhor que seja para o campo biomédico-científico, não justificaria o sacrifício extremo numa pesquisa. Sabe-se que qualquer exame de maior complexidade envolve risco, advindo das circunstâncias radioativas, químicas, ou melhor, fisiologicamente prejudiciais à saúde. Baseando-se nessa prerrogativa, é que se embasa o consentimento do paciente. Não somente do resultado benéfico deverá constar o termo, mas também dos riscos maléficos que as conseqüências irão proporcionar.

Ressalte-se que tanto o médico, quanto a instituição fornecedora de materiais, aparelhagens e local para realização da pesquisa, assim como o patrocinador podem ainda ser responsabilizados pelos danos causados, sobretudo porque é inadmissível a remuneração pela participação em pesquisa. A Resolução 196, de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde, em plena vigência, aprovou diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, adotando em suas definições que o participante pesquisado deverá ser voluntário, sendo que é vedada remuneração pelo feito. É evidente que, na hipótese de haver despesas ou danos causados, ter-se-á um ressarcimento como forma de cobrir toda e qualquer dano cometido.

Quanto aos aspectos éticos, há que se ressaltar, a priori, o consentimento livre e esclarecido do indivíduo-alvo, de acordo com o artigo 123 do Código de Ética Médica, assim como a devida proteção a grupos vulneráveis ou incapazes legalmente, sendo representados ou assistidos por seus representantes legais ou entidades protetoras, no caso dos silvícolas, por exemplo.

Os procedimentos, além de fornecerem segurança, deverão seguir algumas exigências determinadas pela Resolução 196/1996. O fato da pesquisa ser fundamentada na experimentação prévia realizada em laboratórios, animais ou outros fatos científicos é indispensável, uma vez que os caminhos a serem adotados deverão ser de cunho preciso, com o propósito evidente de se evitar danos previsíveis.

Decerto que a pesquisa também deverá assegurar a confidencialidade e a privacidade do paciente, assim como a proteção da imagem e a não estigmatização, ou seja, deixando uma “marca” na pessoa, procurando garantir a auto-estima, mesmo porque, o nível de exposição já é extremamente considerável, o que torna dispensável outros níveis de desgaste psicológico.

Deve-se, ainda, assegurar a inexistência de conflito de interesses entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa ou patrocinador do projeto, o que compete ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), mediante análise prévia das razões.

Pormenorizando as formalidades do consentimento expresso, a regulamentação enumera alguns requisitos para conferir-lhe validade, como linguagem acessível para leigos. Deve constar, ainda, a justificativa, os objetivos, os desconfortos, riscos possíveis e procedimentos escolhidos, assim como métodos alternativos, não necessariamente em termos técnicos, mas de maneira superficial, desde que temas prejudiciais não sejam omitidos, sob pena de indeferimento pelo CEP - Comitê de Ética em Pesquisa.

É importante frisar que o consentimento poderá ser revogado em qualquer fase da pesquisa, porém sem caráter retroativo, sem penalização alguma e sem prejuízo ao seu cuidado por já ter sido iniciado. Em se tratando de dados pessoais envolvidos na pesquisa, rege-se pela garantia do sigilo. Deve-se ainda estabelecer as formas de indenização diante de eventuais danos decorrentes, por mais que os mesmos sejam imprevisíveis ao tempo da pesquisa, o que é irrenunciável.

O protocolo compreende a apresentação do projeto com exposição clara de seus objetivos e perfil do sujeito da investigação ao Comitê de Ética em Pesquisa para apreciação, que deverá encaminhar à Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Ministério da Saúde) e fazer seu pronunciamento autorizando ou não o início da pesquisa. Deve-se fazer um detalhamento dos recursos financeiros envolvidos, abrangendo a fonte, forma e valor de remuneração do pesquisador e outros recursos humanos, gastos com infra-estrutura,  impacto na rotina do serviço de saúde da instituição onde se realizará e qualificação dos Centros de Pesquisa envolvidos no estudo, assim como as qualificações dos investigadores responsáveis.

Hipoteticamente, qualquer cidadão poderá vir a ser um sujeito de pesquisa, desde que seja adequadamente esclarecido sobre todos os aspectos envolvidos, como procedimentos adotados, pelos quais será submetido, possíveis riscos, direitos que lhe são garantidos, deveres como participante e qual acordo deverá subscrever para convalidar sua situação.

Ao serem publicados os resultados da pesquisa, autores e editores têm obrigações éticas, devendo preservar a precisão dos feitos. Resultados tanto positivos, quanto negativos, devem ser publicados ou, caso contrário, devem estar disponíveis para publicação. As fontes de financiamento, afiliações institucionais e quaisquer conflitos de interesse devem ser também declarados. Tamanha exigência justifica-se pela necessidade de evitar-se que erros cometidos sejam repetidos.

Tanto os ônus quanto os benefícios advindos do processo de investigação e dos resultados da pesquisa devem ser distribuídos de forma justa entre as partes envolvidas, e devem estar explicitados no protocolo, ou seja, previamente determinados, de acordo com a Resolução 292, de 08 de julho de 1999.

A lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, que regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, trata em seu artigo 10º, inciso VIII, das técnicas, métodos operatórios ou cirúrgicos, bem como métodos terapêuticos ou de diagnósticos para a aplicação no corpo humano ou animal, não considerando como invenção nem modelo de utilidade passíveis de patenteabilidade.

Já existem, no Brasil, Certificados que fornecem “Selos de Qualidade em Pesquisa Clínica”, o que certamente permite a interessados, como patrocinadores, editoras e profissionais clínicos, identificar os Centros de Pesquisa que atuam dentro dos critérios éticos e técnicos exigidos pelas normatizações nacionais e internacionais aplicáveis, permitindo níveis de aplicabilidade de confiança para quem é pesquisado, segurança para quem investe, assim como respaldo para quem reputa seu projeto. De certa forma, leva à uma exclusão para os grupos que ainda não se adaptaram ou não se atentam para detalhes como esses, mas que, para quem se foca num padrão de excelência a fim de conciliar informações precisas com procedimentos corretos, considera-se de cunho fundamental a aquisição de um reconhecimento pela busca da credibilidade.

BIBLIOGRAFIA

DE FRANÇA, Genival Veloso, Comentários ao Código de Ética Médica. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2000
SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite Santos, Biodireito. Ciência da vida, os novos desafios. São Paulo: RT, 2001
DE FREITAS, João, Bioética. Belo Horizonte: Interlivros jurídica, 1995
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¹Fonte: Conep, Anvisa – 2001

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