Silvia
Ferreira Persechini
Advogada,
especialista em Direito de Empresas pela PUC/MG e mestranda em Direito de
Empresa pela na Faculdade de Direito Milton Campos
*publicado
originalmente no Boletim Jurídico N.º 01, em 08/05/2008
Nos
termos da Lei 5.474/68, a duplicata é o único título de crédito que pode
documentar a operação faturada de compra e venda ou de prestação de serviços.
Ela deve ser emitida juntamente com a nota fiscal/fatura que discrimina, dentre
outras informações, as mercadorias ou os serviços e os seus respectivos valores.
Todavia,
hodiernamente, em razão do desenvolvimento da tecnologia, é costume, no mundo
dos negócios, a realização de compra e venda e/ou de prestação de serviços sem
a emissão da duplicata.
O vendedor
ou o prestador de serviços, por meio de seu computador, preenche, com os dados
de uma duplicata inexistente, um formulário virtual disponibilizado por
instituição financeira. Esse procedimento dá origem a um boleto bancário.
Posteriormente, o banco remete esse boleto ao devedor para cobrança, e, na
hipótese de não haver pagamento, a instituição financeira, com a autorização do
credor, protesta tal documento por indicação. Ou seja, apresenta ao cartório o
simples aviso de cobrança, tirando o protesto com base nas informações nele
contidas.
A
jurisprudência e a doutrina apresentam entendimentos divergentes com relação à
legalidade de se efetuar o protesto na situação descrita acima.
Consoante
os termos do artigo 1°, da Lei n° 9.492/97, é certo que o protesto deixou de
abranger apenas os títulos de crédito, modernizando o seu próprio conceito ao
permitir que também outros documentos de dívida possam ser protestados. No
entanto, o legislador não definiu o que seria um documento de dívida nem
esclareceu qual ou quais seriam os requisitos necessários para que esse
documento pudesse servir de sustentáculo ao protesto, o que contribui para a
divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a questão ora intitulada.
O
credor de um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços pode ser
prejudicado ao tentar cobrar o seu crédito, por meio da emissão de boleto
bancário, caso a instituição financeira, com a sua autorização, leve a protesto
esse documento, sem a efetiva emissão da duplicata. Isso pode ser concretizado
ainda que o credor possua a respectiva nota fiscal/fatura.
Há o
entendimento de que nem o boleto bancário nem a nota fiscal seriam documentos
passíveis de protesto. Assim, o credor pode ser vencido em uma ação cautelar de
sustação de protesto ou numa ordinária de cancelamento. Pior, sem a emissão da
duplicata, ele não terá embasamento legal para um procedimento executivo. Essa
compreensão é consubstanciada na seguinte jurisprudência:
APELAÇÃO CÍVEL - NOTA FISCAL - INEXISTÊNCIA DA RESPECTIVA DUPLICATA - IMPOSSIBILIDADE DE PROTESTO - INEXIGIBILIDADE DE OBRIGAÇÃO - NÃO COMPROVAÇÃO. A simples nota fiscal não enseja apontamento de protesto, por não constituir título de crédito. A emissão de nota fiscal sem remessa do título para aceite ofende o direito do sacado de realizar a recusa legal a que se referem os artigos 8º e 21 da Lei 5.474/68; O não atendimento do ônus de provar coloca a parte em desvantajosa posição para a obtenção do ganho de causa. A produção probatória, no tempo e na forma prescrita em lei, é ônus da condição de parte. A prova das alegações cabe a quem alega o fato. Inteligência do art. 333, I do CPC [TJMG. Autos n° 2.0000.00.419056-9/000(1). Rel. Domingos Coelho. DJ. 10.03.2004].
Por
outro lado, há quem entenda que, apenas com o boleto bancário e/ou a nota
fiscal, poderá haver o protesto por indicação. Esse conceito origina-se dos
termos do parágrafo único, do artigo 8°, da Lei de Protesto, que assim dispõe:
“poderão ser recepcionadas as indicações a protestos das Duplicatas Mercantis e
de Prestação de Serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de
dados, sendo de inteira responsabilidade do apresentante os dados fornecidos,
ficando a cargo dos Tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas”.
Com
efeito, a corrente que tem esse entendimento considera que esses boletos
bancários originados de documentos virtuais emitidos pelo credor seriam uma
forma de “duplicata virtual”, o que viola a própria Lei de Duplicatas. Por exemplo,
nos termos do artigo 6°, da Lei 5474/68, a duplicata, salvo quando tiver
vencimento à vista (neste caso será apresentada diretamente para pagamento),
deverá ser apresentada para aceite para que o sacado possa exercer o seu
direito de recusa, nas hipóteses previstas nos arts. 8° e 21, da Lei n°
5.474/68, sob pena do credor se responsabilizar pelos eventuais prejuízos
decorrentes da falta dessa apresentação.
Sobre
essa praxe de não emitir a duplicata, o Prof. Wille Duarte Costa (2006) explica
que:
[...] o costume já generalizado tem feito com que nenhuma duplicata seja extraída, mas em lugar dela enviem um “boleto” ou aviso de cobrança, sem assinatura de quem quer que seja, ficando o devedor sem saber se a Instituição Financeira é mandatária do sacador, pois não há endosso-mandato; nem se ela é legítima possuidora do título, uma vez que não há naquele papel qualquer endosso. Aquele “boleto” fere em tudo a Lei de regência, pois até falsamente diz referir-se a uma duplicata, cujo número indica. Sua quitação, em verdade, não passa de uma impressão de máquina própria, sem qualquer assinatura do recebedor. Isto é procedimento ilegal. Esse absurdo, sem sentido, é que a doutrina marginal tem entendido tratar-se de “duplicata virtual” ou “duplicata escritural” [COSTA, Wille Duarte. Títulos de Crédito. 2.ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 408].
É fato
que, nos tempos modernos em que vivemos, a cobrança por meios eletrônicos, sem
a emissão de papel, é uma realidade intransponível. Porém, a prática atual do
mercado de não se extrair efetivamente a duplicata - ensejando o protesto por
indicação, ou seja, aquele realizado apenas com as informações sobre a relação
causal e com a apresentação de boleto bancário e/ou nota fiscal e fatura -
viola o texto da lei especial. Conforme o § 1°, do artigo 13, da Lei de
Duplicatas, o protesto por indicação somente será possível quando a duplicata
tiver sido retida pelo sacado. Isto é, de qualquer forma, nos termos da
lei, a duplicata precisa existir.
Ademais,
a própria Lei de Protesto, em seu § 3°, do art. 21, esclarece que o protesto
por indicação de duplicata apenas poderá ocorrer quando este título não tiver
sido devolvido pelo sacado.
Ainda,
é inadmissível entender que mencionado boleto bancário seria uma espécie de
“duplicata virtual”, porque, nos termos do art. 889, § 3°, do Código Civil, o
título pode ser emitido, virtualmente, desde que contenha a data de emissão, a
indicação precisa dos direitos que confere e a assinatura do emitente.
Tal
boleto bancário não contém a assinatura do emitente nem sequer na forma
criptografada. Portanto, podemos dizer que a corrente que entende ser possível
o protesto por indicação de boleto bancário e/ou nota fiscal está em confronto
com a legislação em vigor, ainda que se conclua que tais documentos sejam
passíveis de protesto. A uma porque o boleto bancário não se confunde com uma
duplicata; a duas porque a própria Lei de Protesto, em seu art. 21, esclarece
que o protesto por indicação é possível apenas quando a duplicata for retida
pelo sacado, corroborando com o disposto na Lei 5.474/68.
Assim,
apesar de ser usual e prática a emissão somente de boletos bancários para
cobrança de débito advindo de negócio de compra e venda ou de prestação de
serviços, deve o respectivo credor ter o cuidado de emitir o título, nos termos
da Lei de Duplicata, sob pena de ser vencido em um eventual processo de
indenização ou de sustação/cancelamento de protesto, caso o devedor não pague o
mencionado boleto e a instituição financeira, com a autorização do credor,
realize o protesto por indicação. Ademais, frise-se que apenas com a emissão da
duplicata é que o credor, caso necessário, poderá propor um procedimento
executivo contra o devedor.
________________________
¹ Art.
1º Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o
descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.
²
Art 8º O comprador só poderá deixar de aceitar a duplicata por motivo de:
I -
avaria ou não recebimento das mercadorias, quando não expedidas ou não
entregues por sua conta e risco;
II -
vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade das mercadorias,
devidamente comprovados;
III -
divergência nos prazos ou nos preços ajustados.
Art.21.
O sacado poderá deixar de aceitar a duplicata de prestação de serviços por
motivo de:
I - não
correspondência com os serviços efetivamente contratados;
II -
vícios ou defeitos na qualidade dos serviços prestados, devidamente comprovados;
III -
divergência nos prazos ou nos preços ajustados.
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