quarta-feira, 6 de novembro de 2013

Existir, valer e ser eficaz

Silvia Ferreira Persechini

Sócia do Escritório Homero Costa Advogados, especialista em Direito de Empresas pela PUC/MG e Mestre em Direito de Empresa pela Faculdade de Direito Milton Campos

*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 29 em 25/11/2010


Existir, valer e ser eficaz são situações distintas em que se podem encontrar os fatos jurídicos, mormente porque se passam em planos diferentes.

Nesse contexto, Pontes de Miranda explica que:

Existir, valer e ser eficaz são conceitos tão inconfundíveis que o fato jurídico pode ser, valer e não ser eficaz, ou ser, não valer e ser eficaz. As próprias normas jurídicas podem ser, valer e não ter eficácia (H. Kelsen, Hauptprobleme, 14). O que se não pode dar é valer e ser eficaz, ou valer, ou ser eficaz, sem ser; porque não há validade, ou eficácia do que não é¹.

No mesmo sentido, Bernardes de Mello corrobora:

Na análise das vicissitudes por que podem passar os fatos jurídicos, no entanto, é possível encontrar situações em que o ato jurídico (negócio jurídico e ato jurídico stricto sensu) (a) existe é válido e é eficaz (casamento de homem e mulher capazes, sem impedimentos dirimentes, realizado perante autoridade competente), (b) existe, é válido e é ineficaz (testamento de pessoa capaz, feito com observância das formalidades legais, antes da ocorrência da morte do testador), (c) existe, é inválido e é eficaz (casamento putativo, negócio jurídico anulável, antes da decretação da anulabilidade), (d) existe, é inválido e é ineficaz (doação feita pessoalmente, por pessoas absolutamente incapazes), ou, quando se trata de fato jurídico stricto sensu, ato fato-jurídico, ou fato ilícito lato sensu, (e) existe e é eficaz (nascimento com vida, a pintura de um quadro, o dano causado a bem alheio) ou, excepcionalmente, (f) existe e é ineficaz, porque a validade é questão que diz respeito, apenas, aos atos jurídicos líticos².

Portanto, verifica-se que é impossível tratar, da mesma forma, as expressões “existência”, “validade” e “eficácia”, porque expressam três situações distintas pelas quais podem passar os fatos jurídicos. No entanto, não é raro encontrar na doutrina e na jurisprudência o emprego errôneo e/ou inadequado das expressões “existência”, “validade” e “ineficácia”, como se fossem, até mesmo, sinônimas. Martinho Garcez confunde os conceitos de ato nulo (grau máximo da invalidade) com ato inexistente, ao definir o ato jurídico nulo, nos seguintes termos: “Um ato jurídico é nulo: 1° quando a lei o declara tal, como contrário às suas prescrições; 2° quando lhe faltam condições essenciais à sua existência; 3° quando é contrário à ordem pública e aos bons costumes”³.

Não se pode concordar com o mencionado autor. O plano da existência é a base para o da validade e o da eficácia; não se pode ter um ato válido, inválido, eficaz ou ineficaz, sem que ele, primeiramente, exista.

Assim, pode-se dizer que o plano da existência é o plano do ser, passam por ele todos os fatos jurídicos, sejam lícitos ou ilícitos. No momento em que a norma jurídica incide em um determinado fato, este é ingressado no plano da existência.

Por seu turno, o plano da validade corresponde à análise da perfeição do ato jurídico (ausência de qualquer vício invalidante) e da existência de defeito invalidante.

Destaque-se que nem os fatos jurídicos lícitos – aqueles que decorrem de fenômenos da natureza, sem a intervenção humana – nem os ilícitos passam pelo plano de validade. Isso porque, não há como caracterizar em nulo ou anulável (graus da invalidade) um fato decorrente da natureza (fato jurídico stricto sensu) ou um ato-fato jurídico (aquele que decorre de comportamento humano e gera consequências jurídicas, sendo que o ato volitivo, ou seja, a vontade humana é irrelevante). Da mesma forma, uma eventual aplicação de nulidade a um ato ilícito traria benefício ao próprio figurante do ato, o que seria um verdadeiro contrassenso.

De acordo com Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald “há um certo paralelismo entre os elementos do plano da existência e os elementos do plano da validade”4. Isso porque os mencionados autores, ao tratarem do negócio jurídico, afirmam que seriam pressupostos de existência: (i) agente; (ii) objeto; (iii) forma e (iv) vontade exteriorizada consciente, sendo que a qualificação destes ensejam os requisitos de validade: (i) agente capaz; (ii) objeto lícito, possível, determinado ou determinável; (iii) forma adequada (prescrita ou não defesa em lei); (iv) vontade exteriorizada conscientemente, de forma livre e desembaraçada.

Por fim, o plano da eficácia será o momento em que os fatos jurídicos produzirão os seus respectivos efeitos, criando, extinguindo, modificando ou substituindo relações jurídicas.

Assim, pode-se dizer que os fatos jurídicos podem passar por três planos distintos: o da existência, o da validade e o da eficácia. Trata-se de situações diversas, sendo inconcebível classificá-las como sinônimas.

___________

¹ PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado: parte geral, t. IV, p. 15

² MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do fato jurídico: plano da existência, 2007, p. 98.

³ GARCEZ, Martinho. Das nulidades dos atos jurídicos, p. 16

4 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito civil: teoria geral, p. 408

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