quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A sociedade de Risco e a “Expansão” do Direito Penal

Daniela Villani Bonaccorsi

Advogada criminalista do escritório Leonardo Isaac Yarochewsky Advogados Associados e Associada ao escritório Homero Costa Advogados. Mestre e Doutorando em Direito Processual. Professora de Direito Penal PUC-Minas

*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 30 em 29/12/2010


A denominação sociedade de risco teve origem no modelo teórico do sociólogo alemão Ulrich Beck, em 1986 (Risk Society), e desde então obteve grande repercussão. De acordo com o sociólogo, o modelo caracterizaria e definiria a atual sociedade pós industrial.

O sociólogo alemão propõe a distinção entre uma primeira e uma segunda modernidade. A primeira modernidade seria caracterizada como uma sociedade estatal e nacional, estruturas coletivas, pleno emprego, rápida industrialização, exploração da natureza não "visível", a denominada sociedade de modelo simples ou industrial. Com efeito, na sociedade européia, através de várias revoluções políticas e industriais, a partir do século XVIII, o autor trata de uma verdadeira "modernização da modernização" ou "segunda modernidade", ou também "modernidade reflexiva".

Em tal processo de modernização seriam postas em "reflexão", assunções fundamentais, as insuficiências e as antinomias da primeira modernidade. E com tudo isso estão vinculados problemas cruciais da política moderna. Para ele, a modernidade iluminista deve enfrentar o desafio de cinco processos: a globalização, a individualização, o desemprego, o subemprego, a revolução dos gêneros e, last but not least, os riscos globais da crise ecológica e da turbulência dos mercados financeiros. Estaria se consolidando um novo tipo de capitalismo e um novo estilo de vida, muito diferentes daqueles das fases anteriores do desenvolvimento social (Beck, 1999: 2/7).

Os impressionantes avanços tecnológicos na sociedade pós industrial são fontes de riscos cada vez maiores para os cidadãos, esses não só relacionados a fenômenos naturais, mas riscos que têm origem em decisões e comportamentos humanos produzidos com o uso dos mencionados avanços tecnológico.

Desde os anos 60, as condutas e as atividades que poderiam oferecer perigo, alastraram-se no sistema penal, a violência tomou proporções cada vez maiores, onde se reclama por maior intervenção penal e por uma excessiva intervenção estatal, uma “legislação de emergência” verdadeiro desenvolvimento “hipertrófico”¹ do direito penal (Luisi, 2003, p. 42), com tendências intervencionistas e preventivas. 

A sensação de insegurança na sociedade chamada de risco, ou pós-industrial é traço significativo, fala-se de uma sociedade da “insegurança sentida (ou como a sociedade do medo)”², pois “é inegável que a população experimenta uma crescente dificuldade de adaptação” com os avanços tecnológicos, novas realidades econômicas e até, ético-sociais.

Ademais, o avanço dos meios de comunicação e tecnológicos, como a internet, têm aumentado o sentimento de insegurança subjetiva³ com notícias que atuam como multiplicador de notícias de crimes, catástrofes e conseqüente ânsia de repressão penal e  de tal modo que “a segurança se converte em uma pretensão social à qual se supõe que o estado e, em particular, o Direito Penal, devem oferecer uma resposta” (SILVA SANCHES, 2002, p. 40). Parte-se do axioma de que há de existir um terceiro responsável a quem imputar o fato e suas conseqüências, verdadeira expansão da imputação.

A sociedade de risco, traçada como o modo social pós-industrial aparece caracterizada por um âmbito econômico variante e avanços tecnológicos na indústria, sistema financeiro, informática, genética e outros com repercussões diretas a cada indivíduo (SILVA SANCHES, 2002, p.28). A denominada sociedade de risco pode ser vista como riscos a danos não delimitáveis “riscos globais e com freqüência, irreparáveis; que afetam todos os cidadãos; e que surgem de decisões humanas (BECK, 1993, p. 19).

A idéia de uma sociedade de risco é diretamente ligada à globalização e sociedade pós-industrial, ligada às mudanças históricas como ocorrência de guerras, crise econômica, abertura de mercado de capitais, aumento de atividades industriais, riscos ao meio ambiente e, formação de atividades criminosas organizadas. “A sociedade pós-industrial é, além da ‘sociedade de riscos’ tecnológicos, uma sociedade com outras características individualizadoras que contribuem à sua caracterização como uma sociedade de ‘objetiva’ insegurança. (SILVA SANCHES, 2002, p.30)”. Utilizando tal termo, o autor explica que o emprego de meios técnicos, comercialização de produtos, negociações de valores em âmbito internacional trazem efeitos nocivos, mas desconhecidos na sociedade, no sentido de que o cidadão conhece o risco, mas não quem, como, e em que ritmo o dano seria causado.

A exigência de responder à macrocriminalidade tem se concebido em questões punitivistas. Afirmação esta fundada nas características da sociedade de risco, diante no novo modelo de criminalidade que cria “forte sensação de insegurança” e, em argumentos de déficit de aplicação da legislação penal, uma vez que são condutas não abrangidas ou esperadas no direito penal clássico. “La paura e l´incertezza per la stessa sopravvivenza delle persone e dei loro beni sono sentimenti che si diffondono dagli elettori agli eletti secondo uma lógica fisiologica típica do ogni Stato Democratico (...).”4

A fim de responder aos “anseios sociais” e diminuir o sentimento de insegurança, a aplicação penal partiu de leis esparças, já que se fala de situações até então não previstas, leis penais para abrangência de situações pontuais, leis que “acalmariam” a sociedade de risco.

Hoje há uma tendência claramente dominante no sentido de introdução de novos tipos penais, agravamento dos existentes, ampliação de novos espaços vistos como jurídico-penalmente relevantes, flexibilização das regras de imputação e verdadeira “expansão” da aplicação de sanções penais (SILVA SANCHES, 2002, p. 21).

Como salientado, de forma a satisfazer o medo e o risco, o direito penal passa a ter caráter simbólico, sofrendo mudanças também em relação aos tipos penais. Uma vez que, diante da preocupação de proteção aos riscos, as condutas tipificadas passaram a amparar, em sua grande maioria, crime de perigo abstrato e formais. “Os delitos de resultado se mostram crescentemente insatisfatórios havendo  o uso cada vez maior de tipos de perigo e tipos com configuração cada vez mais abstrata ou formalista”. (SILVA SANCHES, 2002, p.31).

Por isso, o “Direito penal de riscos”, além de acabar por ter uma caráter meramente simbólico, acaba por relativizar uma seria de direitos e garantias fundamentais, incompatíveis com o momento de evolução da sociedade em direção a formas cada vez mais complexas, que rompeu o equilíbrio dualista entre o Estado e cidadãos, favorecendo o surgimento de múltiplos direitos e garantias (BARACHO, 1984, p.125), repudiando sistemas penais autoritários ou  totalitários, do tipo opressivo fundados em apriorismos ideológicos e radicais.

A expansão do direito penal, dentre outros abusos, diante da dificuldade de responsabilização e individualização de condutas acaba por trazer graves conseqüências também no âmbito processual penal, como objeto desse trabalho, na imputação alternativa nos crimes praticados por organização criminosa.

A visão do direito penal “máximo” como único instrumento capaz de solucionar os problemas político-sociais supõe essa expansão, transferindo ao direito penal “um fardo que ele não pode carregar”.

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¹ O termo “hipertrofia” penal foi utilizado em artigo publicado em 1898, por Reinhart Franck, salientando que o uso da pena e das tipificações das condutas tem sido abusivo, e por isso perdeu parte do seu crédito e, portanto, de sua forma intimidadora, já que o corpo social deixa de reagir do mesmo modo que o organismo humano não reage a um remédio administrado abusivamente. (FRANCK, Reinhart apud LUISI, 2003. p 42. ) Ratificando tal afirmação: Na “hipertrofia penal”, podemos citar expressamente a criação de inúmeras leis no âmbito econômico como no caso dos crimes contra a ordem econômica; dos crimes contra o sistema financeiro; dos crimes de lavagem de dinheiro e, todas, com uma característica em comum, a macrocriminalidade. Na legislação penal para “amparar” condutas até então atípicas, deu-se lugar à excessiva extensão da legislação penal, como se fosse o único meio para combater “qualquer força hostil que se pusesse em contradição com a ordem jurídica”. (LUISI, 2003, p. 41).

² Tal expressão é utilizada por Silva Saches ao caracterizar a expansão do direito penal relacionando a sociedade de risco à fenômeno psicológico social e multiplicação emocional do risco

³Vale ilustrar que tal sentimento de insegurança também acaba gerando um fenômeno de identificação social com a vítima, o que também fundamenta o reclamo pela intervenção penal. A criminalidade organizada, a criminalidade das empresas, do meio ambiente, a criminalidade dos poderosos, que hoje preside as discussões acadêmicas  acaba  por  trazer uma representação social do delito e a mencionada contemplação do cidadão como vítima em potencial (SILVA SANCHES, 2002, p.50, 54)

4 O medo e a incerteza pela sobrevivência das pessoas e de seus bens são sentimentos que se difundem dos eleitores aos eleitos segundo uma lógica típica de cada estado democrático. (Tradução Livre)

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