segunda-feira, 14 de julho de 2014

A Prescrição da Pretensão Reparatória Cível e a Causa Suspensiva do Art. 200 do Código Civil de 2002



Stefano Naves Boglione¹
Flor Elias Pompeu
²  


¹Sócio do Escritório Homero Costa Advogados, Mestre em Direito Empresarial

² Estagiária do Escritório Homero Costa Advogados e bacharelanda  em Direito pela Faculdade FUMEC

 *publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 33 em 25/03/2011

Caio Mário da Silva Pereira conceitua a prescrição extintiva como sendo a “extinção da pretensão jurídica, que não se exercita por certo período, em razão da inércia do titular”¹.

Trata-se de mecanismo garantidor do instituto da segurança jurídica, de suma importância no direito brasileiro, protegendo as relações jurídicas em vigência por determinado lapso temporal, ou reconhecendo o perecimento daquelas que tenham sido abandonadas negligentemente.

Quando da vigência do Código Civil de 1916, não havia estipulação específica de prazo prescricional para a pretensão de reparação civil, pelo que era aplicável a regra geral de 20 (vinte) anos, estampada no art. 177 daquele diploma.


O Código Civil de 2002, hoje vigente, veio a estabelecer, em seu art. 206, §3º, V, que prescreve em 3 (três) anos a pretensão reparatória cível.

O art. 200, por sua vez, estabelece causa suspensiva da prescrição da referida pretensão, de acordo com o qual “
quando a ação se originar de fato que deva ser apurado no juízo criminal, não correrá a prescrição antes da respectiva sentença definitiva”.

O referido dispositivo compele os operadores do direito à discussão a respeito de seu alcance. Afinal, quando será vislumbrada a dependência da apuração do fato pelo juízo criminal?
Parte da jurisprudência tem interpretado o dispositivo de forma genérica, segundo a qual o só fato de haver pendente julgamento de ação criminal que envolva fato gerador do dano ensejaria a suspensão do prazo prescricional da reparação civil.

É o que se denota do seguinte julgado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça:

CIVIL E PROCESSUAL. DEMANDA REPARATÓRIA. ACIDENTE AUTOMOBILÍSTICO. FATO CRIMINOSO. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. INTELIGÊNCIA DOS ARTS. 200 C/C 935 DO CC. PRAZO. CONTAGEM. ART. 206, §3º, DO CC.
1. Tratando-se de ato que enseja, além da reparação civil, procedimento criminal, o lapso prescricional começa a fluir a partir do trânsito em julgado da sentença definitiva penal. 2. A sentença penal condenatória transitou em julgado em 2006. A demanda reparatória fora proposta em 2008. Portanto, não há como vislumbrar qualquer afronta ao prazo prescricional do §3º, V, do art. 206, do Código de Processo Civil. 3. Agravo regimental a que se NEGA PROVIMENTO. (AgRg no Ag 1300492 / RJ
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO
2010/0072871-8 Relator(a) Ministro VASCO DELLA GIUSTINA (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RS) (8155) Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA - Data do Julgamento 03/08/2010 - Data da Publicação/Fonte DJe 16/08/2010

No entanto, a aplicação generalizada do referido dispositivo encontra óbice no art. 935, do Código Civil de 2002, que estabelece a premissa de que
a responsabilidade civil é independente da criminal².

Ademais, a expressão “
fato que deva ser apurado no juízo criminal”, estampada no art. 200, do Código Civil de 2002, aponta para a necessidade de delimitação das hipóteses de cabimento da causa suspensiva a que se refere.

Apenas seria possível, pois, condicionar o curso do prazo prescricional para a pretensão de reparação civil à apuração criminal, quando restarem pendentes questões fundamentais, passíveis de apuração exclusivamente no juízo criminal:
a autoria e a materialidade do fato.

A título ilustrativo, imagine-se a ocorrência de acidente automobilístico que resultou na morte de uma pessoa. Não se sabe, contudo, se o ocorrido resultou da prática de um ato criminoso, ou se ocorreu por mera imprudência da vítima, sem qualquer participação de terceiro.

É certo que o fato gerou um dano de cunho moral, e muitas vezes patrimonial, aos parentes da vítima, o que seria passível de reparação civil, em tese. Inobstante,
in casu, não dispõem as partes de elemento essencial para a imputação da obrigação de indenizar por fato criminoso: prova da materialidade, ou seja, da efetiva prática de um ato típico, ilícito e culpável.

A fim de se reconhecer a obrigação de indenizar, seria necessário atravessar um inquérito policial e um procedimento criminal, por meio dos quais seriam produzidas provas necessárias para a apuração e constatação da materialidade do crime.

Resta claro, pois, que, nesta hipótese, é fundamental a existência de uma sentença penal condenatória – transitada em julgado – que torne viável o ajuizamento de procedimento cível para o recebimento de valores indenizatórios, sendo totalmente justificável e, mais, necessária a suspensão do prazo prescricional.

Por outro lado, há situações em que, desde a ocorrência do fato, sendo a autoria e a materialidade de pleno conhecimento daquele que sofreu o dano passível de reparação, revelam-se presentes todos os elementos necessários para a submissão do fato ocorrido à apreciação do juízo cível.

Ainda que se trate de ilícito penal, passível de condenação criminal, exatamente pela independência entre as esferas cível e criminal, aquele que sofreu o dano poderá, a qualquer momento, ajuizar a ação reparatória cível.

Não há, nesta hipótese, qualquer impedimento ou pendência que obste a busca da reparação civil, pelo que se mostra inaplicável a suspensão prevista pelo art. 200 do Código Civil de 2002.

Vale, aqui também, ilustrar: considere-se o mesmo exemplo acima utilizado, imaginando agora que testemunhas presenciaram o momento em que um sujeito, apresentando sinais de embriagues, avançou o sinal vermelho em alta velocidade, abalroando o carro da vítima. Ainda, o autor permaneceu no local, assumindo a autoria, o que constou, inclusive, de boletim de ocorrência lavrado no local.

Sendo certa a ocorrência do fato passível de gerar o dano e conhecendo-se o seu causador, nada obsta que, desde logo, aquele que sofreu o dano ingresse no juízo cível visando à reparação, seja ela de cunho moral ou patrimonial, cabendo a este a produção de provas dos fatos constitutivos de seu direito.

Neste sentido tem se posicionado o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, o que se infere de recentes julgados:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. PRESCRIÇÃO. APURAÇÃO DE FATO IRRELEVANTE EM PROCESSO CRIMINAL. NÃO-INCIDÊNCIA DO ARTIGO 200 DO CÓDIGO CIVIL. Não se aplica a suspensão do prazo prescricional prevista no artigo 200 do Código Civil se o fato apurado perante o Juízo criminal é irrelevante para o fim de imputar responsabilidade pelo evento danoso ao réu da ação em que se pretende o ressarcimento por dano moral. Recurso conhecido e improvido. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0024.07.489224-1/001 - COMARCA DE BELO HORIZONTE - APELANTE(S): HERICA JULIANNI VALADARES DE SOUZA - APELADO(A)(S): ESTADO MINAS GERAIS - RELATORA: EXMª. SRª. DESª. ALBERGARIA COSTA

CIVIL E PROCESSUAL CIVIL- APELAÇÃO- AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E MATERIAIS DECORRENTES DE CRIME DE HOMICÍDIO- AJUIZAMENTO PELOS FILHOS MENORES E PAIS DA VÍTIMA- AGRAVO RETIDO DO RÉU- PRESCRIÇÃO- APLICABILIDADE DO ART. 206 § 3º, V DO NCC- ART. 200 DO NCC- NÃO CABIMENTO NO PRESENTE CASO- PROVA DA MATERIALIDADE E DA AUTORIA- PRESENÇA- PRESCRIÇÃO CONFIGURADA APENAS PARCIALMENTE- INAPLICAÇÃO QUANTO AO MENOR- DANOS MORAIS VERIFICADOS- RESPONSABILIDADE CIVIL DE INDENIZAR CARACTERIZADA- PENSIONAMENTO CABÍVEL- CONSTITUIÇÃO DE CAPITAL- NECESSIDADE- MULTA- CABIMENTO- RESTITUIÇÃO DE DESPESAS- PROVA DOS GASTOS INEXISTENTES- IMPOSSIBILIDADE- REFORMA PARCIAL DA SENTENÇA- AGRAVO RETIDO PROVIDO EM PARTE- APELAÇÕES CONHECIDAS, PRIMEIRA PROVIDA EM PARTE E SEGUNDA PROVIDA EM PARTE.-Decorrido o prazo prescricional, o titular do direito, que permaneceu inerte, perde a oportunidade de requerê-lo via processo judicial, e o processo por ele promovido deve ser extinto conforme art. 269, IV do CPC.-O prazo prescricional não corre contra os absolutamente incapazes, consoante previsão do art. 169, I do CC/1916, atual art. 198, I do NCC.-Agravo retido conhecido e parcialmente provido.-Demonstrado nos autos que os danos sofridos pela filha menor da vítima advieram dos fatos desencadeados pela conduta do requerido, este último é responsável pela reparação.-A constituição de capital prevista no art. 475-Q do Código de Processo Civil tem natureza de obrigação de fazer, comportando a imposição da multa para o seu cumprimento.-O pedido de restituição de valores gastos com tratamento psicológico depende da prova da despesa.-Apelações conhecidas, ambas providas em parte. APELAÇÃO CÍVEL N° 1.0024.08.126123-2/001 (EM CONEXÃO COM O PROCESSO NÚMERO: 1.0024.08.254708-4/001) - COMARCA DE BELO HORIZONTE - 1º APELANTE(S): MARCOS HUMBERTO MARQUES - 2º APELANTE(S): ROBERTO DERRICK OLIVEIRA SOARES MORAES E OUTRO(A)(S) - APELADO(A)(S): MARCOS HUMBERTO MARQUES, ROBERTO DERRICK OLIVEIRA SOARES MORAES E OUTRO(A)(S), JULIA OLIVEIRA SOARES MORAES, RENE GOMES SOARES, MARIA ROSA DE OLIVEIRA SOARES - RELATORA: EXMª. SRª. DESª. MÁRCIA DE PAOLI BALBINO

Sendo assim, conclui-se que admitir a suspensão do prazo prescricional da pretensão reparatória cível indiscriminadamente seria o mesmo que flexibilizar o instituto da prescrição, convalidando a insegurança jurídica de nosso ordenamento, o que é amplamente repudiado pela mais renomada doutrina, jurisprudência e pelo próprio conjunto de regramentos do direito pátrio.

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¹ PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
²Art. 935.  a responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal


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