sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Empresa Individual de Responsabilidade Limitada

Bernardo José Drumond Gonçalves¹
Luiza Alves²
¹Sócio do Escritório Homero Costa Advogados e especialista em Direito Processual

²Estagiária do Escritório Homero Costa Advogados

*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 39 em 22/01/2012


A Lei nº 12441/11, que entrou em vigor no dia 09/01/2012, alterou o Código Civil de 2002 ao acrescentar o inciso IV ao artigo 44 e o artigo 980-A, bem como modificou o parágrafo único do artigo 1.033. Com essas mudanças, a lei brasileira passou a permitir a constituição da Empresa Individual de Responsabilidade Limitada “EIRELI”, importante inovação no ordenamento pátrio.


O ordenamento brasileiro tem como um de seus objetivos o desenvolvimento econômico, em especial ao fomentar o empreendedorismo. A Constituição da República identifica expressamente em seu art. 4º, II, a garantia de desenvolvimento nacional como um dos fins do Estado, de modo que este deve ser um tópico permanente na pauta governamental, e não uma preocupação passageira ou eleitoral. Ressalte-se, ainda, a posição do ente privado como partícipe imprescindível da ordem social e econômica, devendo, por isso, ser alvo de medidas que protejam seus fins e possibilitem sua atividade.1

Até o advento da Lei n. 12.441/11, um dos tópicos apontados como obstáculos a esse desenvolvimento era a impossibilidade de constituir uma empresa com limitação da responsabilidade quando se tratasse de empresário individual.

Antes da vigência da referida Lei, para ter personalidade jurídica de natureza limitada era preciso que duas ou mais pessoas unissem capital e formassem uma sociedade. Com essa limitação, é possível a distinção entre o patrimônio da empresa e os seus patrimônios pessoais. Os riscos do negócio aumentam substancialmente quando quem o pratica responde de forma ilimitada pelas dívidas contraídas, inclusive com todo seu patrimônio pessoal penhorável.2

Assim, quanto ao empresário individual, não há destaque entre o patrimônio pessoal e o afetado para o exercício da empresa, o que implica uma maior garantia perante os credores, que também podem se valer dos bens subjetivos na execução de um débito.

Por outro lado, os empreendedores – em especial os que praticam pequenos negócios e que não possuem recursos suficientes para suportar os riscos da atividade –, buscando se resguardar perante esse tipo de situação, eram desencorajados de buscar a legalidade em seu intento. Comumente instituíam sociedades “de fachada”. A título de exemplo, cita-se o caso em que um sócio detém 99% das cotas de uma sociedade limitada, e o outro, somente 1%, apenas para preencher o antigo pressuposto da pluralidade de sócios e aumentar as garantias do negócio.

Essa hipótese reflete um desvio da legislação societária, em que há “uma sociedade unipessoal disfarçada”. Como afirma Gladston Mamede, “há muito, o Direito e a realidade social e mercantil brasileira convivem com a hipocrisia das sociedades contratuais que, sendo de direito, não o são de fato”.3

Nesse contexto, faz-se necessária a adoção de medidas que incentivem o cumprimento da lei e evite fraudes, de modo que as sociedades constituídas realmente tenham como característica a affectio societatis, em que há a disposição do contraente em participar de sociedade, em colaboração ativa para a persecução de lucros.

Essa medida deve ocorrer, também, em observância ao art. 5º, inciso XX, da Constituição da República, que estabelece como direito fundamental, que “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”, garantia que é esvaziada pela exigência de sociedade para que haja afetação patrimonial no exercício da empresa.

Ressalte-se, ainda, que não há motivo suficiente para distinguir os agentes associados e individuais. Portanto, a limitação da responsabilidade aos bens sociais somente aos primeiros é um grande empecilho à isonomia.

Após dois anos de tramitação, vigora, então, a Lei n. 12.441, que visa corrigir esse tratamento diferenciado, criando um tipo de pessoa jurídica – a Empresa Individual de Responsabilidade Limitada –, nas condições especificadas pelos artigos alterados no Código Civil.

Parte da doutrina considera haver uma contradição terminológica. Isso se deve ao fato de que a empresa, conceituada por ser o exercício de uma atividadeprópria do empresário – seja este um empresário individual ou uma sociedade empresária –, difere-se de uma pessoa jurídica, que tradicionalmente seriam as sociedades, as fundações, as associações, entre outros tipos definidos por lei.

Assim, a sociedade é um sujeito de direito, enquanto a empresa é um objeto de direito, ou seja, a empresa não detém personalidade jurídica, enquanto a sociedade, em regra, sim.

É verdade que, no ordenamento brasileiro, são muitos os casos em que a empresa é tratada como se fosse o empresário ou a sociedade empresária. No entanto, os institutos são distintos, dotados de conceitos e funções que lhe são peculiares. Dessa feita, não podem ser confundidos entre si, sob pena de prejuízo à segurança jurídico-metodológica.4

Em decorrência disso, seria mais coerente se o legislador tivesse optado pela expressão “empresário individual de responsabilidade limitada”.

Também não é adequada a expressão “sociedade unipessoal”, segundo pretendeu o deputado federal Marcos Montes, autor da lei. Afinal, o termo sociedade pressupõe pluralidade, não obstante alguns casos da legislação alienígena permitam um tipo societário constituído por apenas um sócio, como o faz o Código Civil Francês:

Article 1832
La société est instituée par deux ou plusieurspersonnesquiconviennent par uncontrat d'affecterà une entreprisecommunedesbiens ou leur industrie envue de partagerlebénéfice ou de profiter de l'économiequipourraenrésulter.
Ellepeutêtreinstituée, danslescasprévus par laloi, par l'acte de volonté d'une seulepersonne.
Lesassociéss'engagent à contribuerauxpertes.

A hipótese em que se poderia admitir uma sociedade unipessoal é a prevista no art. 1.033 do Código Civil Brasileiro, segundo o qual, quando uma sociedade é reduzida, temporariamente, a um único sócio, que deverá recompor a pluralidade em 180 dias, registrar-se como empresário individual ou transformar a sociedade em EIRELI.

O regime jurídico a que a EIRELI submete-se é o das regras previstas para as sociedades limitadas, de acordo com o art. 890-A, §6º, do Código Civil, no que couber.

Quanto às omissões, a EIRELI reger-se-á pelas normas aplicáveis às sociedades simples, por força do art. 1.053 do mesmo texto legal.

Para sua identificação, o novo tipo de pessoa jurídica deve ser registrado com a expressão “EIRELI” após a firma ou denominação adotada, em atenção ao art. 980-A, §1º, na nova redação do Código Civil. A partir do art. 1.055 desse diploma, estão dispostas as regras atinentes a essa matéria.

Na firma individual, a EIRELI operará com o nome de seu titular, completo ou abreviado, aditando-lhe, se quiser, designação mais precisa da sua pessoa ou do gênero de atividade. Por exemplo, “João Araújo EIRELI". Na denominação, a EIRELI operará utilizando uma expressão que deve designa o objeto da empresa, por exemplo, "Construções EIRELI".

As Empresas Individuais de Responsabilidade Limitada fornecem ao empresário a garantia de que seu patrimônio pessoal não será envolvido nos negócios da empresa.

Portanto, na esfera das garantias, o patrimônio empresarial não poderá servir de segurança no negócio realizado pelo sócio, assim como no caso contrário, o patrimônio do sócio não poderá ser usado como garantia num negócio realizado pela empresa.

Nesse diapasão, as obrigações contraídas pela EIRELI são de sua exclusiva responsabilidade. Por essa razão, se não possuir patrimônio suficiente para saldá-las, “submeter-se-á ao regime falimentar, respondendo por suas dívidas, exclusivamente, o patrimônio que então tiver, angariado e defasado ao longo de sua existência”. 5

No Projeto de Lei n. n. 4.605, que deu origem à Lei em comento, houve apenas um dispositivo vetado pela Presidente da República, que tratava especificamente sobre esse tópico.

Na exposição de motivos, a Presidente aludiu à expressão “em qualquer situação” constante do dispositivo, que poderia causar distorção na interpretação da Lei, ao afastar os casos gerais em que se desconsidera a personalidade jurídica, como os previstos no art. 50 do Código Civil – desvio de finalidade ou confusão patrimonial como abuso – e o cometimento de ato ilícito na administração da empresa pelo titular.

Com a redação final, aplicam-se à EIRELI as mesmas regras cabíveis à sociedade limitada, “inclusive quanto à separação do patrimônio”, por força do §6º do mesmo dispositivo, como pontuou a Presidente.

O art. 980-A, caput, do Código Civil estabelece o requisito de que o capital social da EIRELI, devidamente integralizado, não pode ser inferior a 100 vezes o maior salário-mínimo vigente no país, no ato de sua constituição. Atualmente, R$62.200,00.

A CCJ da Câmara instituiu a aludida exigência, em seu parecer, sob a seguinte fundamentação:

(…)se faz conveniente delimitar, em proporção razoável, o porte da organização que se pode constituir como empresa individual, a fim de que não se desvirtue a iniciativa nem esta se preste a meio e ocasião para dissimular ou ocultar vínculo ou relação diversa, propugnamos introduzir parâmetro mínimo apto a caracterizar a pessoa jurídica de que ora se trata, fazendo supor que se reúnem suficientes elementos de empresa, como sede instalada ou escritório, equipamentos etc., tal como se fez para caracterizar microempresas e o empresário individual, nas respectivas leis reguladoras.
Com este propósito, estabelecemos que o capital social não deva ser inferior ao equivalente a 100 salários mínimos, montante a partir do qual se tem por aceitável a configuração patrimonial da empresa individual. A tanto, emendamos a redação dada ao caput do art. 985-A proposto (art. 980-A), a ser aditado ao Código Civil por força do art. 2° do Projeto.

Primeiramente, parte dos autores aponta uma incongruência na lei, no que tange à nomenclatura utilizada. O capital não é social, como diz a lei, uma vez que inexiste sociedade no caso da EIRELI. Trata-se, de todo modo, de um capital destinado à formação do patrimônio da empresa individual personificada.

Superada a questão terminológica, o capital “social” mínimo visa certamente evitar empresas fantasmas. O dispositivo parece pretender que pequenos negócios não se beneficiem com a limitação da responsabilidade. Eventual aumento do salário mínimo ou subcapitalização material da empresa, no entanto, não levam à sua desconsideração ou à extinção, o que pode comprometer a serventia do piso inicial.

Além disso, um dos objetivos da restrição é dificultar que a EIRELI seja utilizada como meio de fraude à legislação trabalhista, como ocorre com o microempreendedor individual (MEI). Ou seja, evitar que um empregador, visando reduzir os gastos com mão-de-obra, contrate o empregado como prestador de serviços, conforme ensina Frederico Garcia Pinheiro em seu artigo “Empresa Individual de Responsabilidade Limitada”.

Por outro lado, devemos atentar para que essa restrição não fira um tratamento isonômico entre a EIRELI e os tipos societários. Afinal, ressalvados casos bastante específicos, não existe limitação similar na constituição de sociedades de outros tipos.

Outro ponto que merece análise é o da vedação que o art. 7º da Constituição da República traz à vinculação do salário mínimo para qualquer fim. Alguns juristas entendem, porém, que tal proibição é relativa e tem em vista apenas o uso desse valor como fator de indexação econômica, em contratos de natureza civil, referentes a transações econômicas, com o intuito de que a majoração do salário mínimo não desencadeie “processos inflacionários, com reflexos, obviamente, na política econômica do país”, como defende o consultor Daniel Berselli Marinho. Para demonstrar essa linha de pensamento, basta lembrar as hipóteses em que o próprio texto da Carta Magna vincula o salário mínimo6.

Outra crítica feita à exigência é que o valor de 100 salários mínimos seria exorbitante. Muitas vezes, o pequeno empresário não dispõe desse montante, que, ressalte-se, não é exigido na constituição de sociedades limitadas ou por ações. Por conseguinte, percebe-se que o objetivo do diploma legal de fomentar o empreendedorismo resta, de certa forma, prejudicado.

A Lei n. 12.441/11 dispõe que a “empresa individual de responsabilidade limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social”. O art. 980-A, §2º, por sua vez, diz que “A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade”.

Sem restrições à titularidade da empresa, o texto legal faculta à pessoa jurídica constituir esse tipo de empresa em substituição à formação de subsidiárias integrais, que implicavam altos custos de manutenção e somente eram admitidas às sociedades anônimas, na Lei n. 6.404/76.

Ao aplicar as regras das sociedades limitadas, nada impediria que uma pessoa jurídica figurasse como titular da nova modalidade empresária. Além disso, a exceção existente no §2º do supracitado artigo já é um indicativo de que a EIRELI não é exclusiva às pessoas físicas, embora estas sejam claramente o público alvo da lei.

A fim de corroborar essa acepção, ressalte-se que a redação originária do Projeto de Lei consignava que somente a “pessoa natural” poderia constituir Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, o que não subsistiu no texto final.

Uma consequência dessa exegese é a constatação de que o art. 980-A do Código Civil, tal como instituído pela nova lei, viola a isonomia de tratamento. Explica-se: a pessoa física somente pode participar em uma única EIRELI, entretanto, aludida restrição inexiste para as pessoas jurídicas.

Por sua vez, o Departamento Nacional de Registro do Comércio aprovou normas afetas à constituição e organização da EIRELI. O destaque da Instrução Normativa 117, que edita o Manual de Atos de Registro de Empresa Individual de Responsabilidade Limitada é o impedimento à pessoa jurídica de participar do novo tipo de empresa.

Com isso, há patente polêmica acerca da referida norma. De um lado, críticas sobrevêm à norma: o DNRC teria extrapolado seu poder ao criar um requisito à formação da empresa, efetivamente “legislando”, em interpretação que vai de encontro ao texto do Código Civil. Ao fazê-lo, o órgão ofendeu o princípio da legalidade, genericamente instituído no art. 5º, II, da Constituição da República, de acordo com o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.

Sob outro prisma, o DNRC poderia se justificar nos próprios dizeres do artigo 980-A, ao considerar a aplicação supletiva das regras das sociedades limitadas: o Código Civil não permite que a pessoa jurídica seja administradora da pessoa jurídica, por não possuir capacidade para tal, por força dos arts. 997 e 1.053 da mesma lei. Do mesmo modo, por não deter capacidade para administração, o titular da EIRELI não poderia ser pessoa jurídica.

No entanto, as sociedades limitadas podem nomear administrador não-sócio, consoante a prerrogativa que o artigo 1.061 do Código lhes confere. Inexistindo outra objeção à titularidade do novo tipo de pessoa jurídica senão a capacidade supracitada, é possível que as empresas individuais tenham como titular uma outra sociedade, caso nomeie pessoa natural para a administração das atividades.

Outra possibilidade interessante que a lei traz é a alteração do art. 1.033 do CCB. Antes, quando a sociedade se reduzia a apenas um sócio, este tinha de recompor a pluralidade em até 180 dias, sob pena de extinção da sociedade. Sua única opção era requerer a transformação do registro da sociedade para empresário individual.

No modelo atual, caso ocorra a concentração de todas as cotas da sociedade na titularidade de apenas um sócio, há a faculdade de transformação do registro em uma EIRELI, o que favorece o princípio da preservação da empresa. Logicamente, os requisitos para a formação da EIRELI também devem ser preenchidos nesse caso, como o capital social mínimo, no prazo de 180 dias.

Conclui-se, assim, que a questão da limitação da responsabilidade ao empreendedor individual é crucial em um cenário de maioria absoluta de pequenas e micro empresas no país. A confusão entre o patrimônio pessoal e aquele destinado ao trabalho sempre foi um entrave ao empresário individual no país, que recorria a simulações para a obtenção da limitação da responsabilidade, instituto que inegavelmente atenua os riscos da atividade empresarial. Nesse sentido, a promulgação da Lei n. 12.441 de 2011 significa um avanço rumo à formalização dos pequenos negócios, de modo a incentivar o desenvolvimento da economia nacional como um todo.

__________
1TAVARES, André Ramos. O desenvolvimento econômico e a Constituição de 1988. Jornal Carta Forense, 19 de março de 2008. Disponível em: <http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=572>.Acesso em 04.01.12.
2PINHEIRO, Frederico Garcia. Empresa individual de responsabilidade limitada. Disponível em <http://apeg.org.br/projuridicoweb20/site2011/images/stories/empresaindividualderesponsabilidadelimitada-fredericogarciapinheiro-verso30-07-2011.pdf>. Acesso em 02.01.12.
3MAMEDE, Gladston. Comentários ao Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. São Paulo: Atlas, 2007.
4, 5GONÇALVES NETO, Alfredo de Assis. Empresa individual é avanço da legislação brasileira. Revista Consultor Jurídico, 16 de julho de 2011. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2011-jul-16/empresa-individual-responsabilidade-limitada-avanco-legislacao>>. Acesso em 02.01.12.
6Nadu, Amilcar. Empresa Individual de Responsabilidade Limitada – EIRELI. Comentários à Lei 12441/2011, que altera o Código Civil. Disponível em <http://www.direitointegral.com/2011/08/empresa-individual-de-responsabilidade.html>. Acesso em 06.01.12.
Legislação consultada:
Lei No 10.406, de 10 de janeiro de 2002.
Lei Nº 12.441, de11 de julho de 2011.

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