segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Lavagem de Dinheiro, Crime ou Exaurimento?

Daniela V. Bonaccorsi Vasconcellos

Sócia do Homero Costa Advogados, Mestre e Doutoranda em Direito Processual Penal pela PUC-MG
*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 41 em 19/04/2012


Desde a revolução industrial, inquestionavelmente o mundo capitalista passa por mortificações que refletiram na sociedade, no âmbito econômico e consequentemente nas condutas criminosas. Não só o crime, mas também o criminoso, que até então era aquele que se ligava a crimes violentos, previstos no Código Penal, passaram a tomar espaço em camadas mais vantajosas da sociedade, que hoje se fala até mesmo de "criminalidade dourada", "criminalidade dos poderosos", na qual pessoas com estabilidade financeira e social passaram a incidir em condutas atentatórias a ordem econômica e financeira.



Condutas que levam ao lucro direto passaram a trazer um novo interesse a essa espécie de criminoso, a ocultação da origem de forma a que se possa demonstrar sinais exteriores de riqueza, sem qualquer rastro da ilicitude.
Assim ganha espaço o crime de lavagem de dinheiro.
No Brasil o crime de Lavagem de Dinheiro foi tipificado em 1998 na Lei n. 9.613/98 cujo texto trata dos delitos de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores provenientes da prática de ilícitos que a própria lei descreve em seu artigo 1° e incisos.
A Lei n. 9613/98 veio com certo atraso em relação à legislação de outros países e seguiu modelos adotados por países como Portugal, Alemanha, dentre outros.
A legislação brasileira optou pelo modelo, conforme Exposição de Motivos 692 (PLS nº 209/2003 e PL nº 3443/2008) que vincula o Brasil nos países de terceira geração, ao exigir prévia infração penal para sua caracterização, mas também admitindo qualquer modalidade de crime praticado por organização criminosa para sua caracterização. Adotou-se um sistema, portando, peculiar, podendo-se utilizar a caracterização de sistema misto (PRADO, 2004, p. 248):
O crime antecedente é elementar do crime de lavagem e a conexão não seria somente processual, mas material, entre o liame existente no crime precedente e a lavagem de dinheiro. São elementos normativos do tipo penal.
Na visão do legislador, impedindo que o criminoso do crime precedente usufrua de seu lucro, por via transversa, tenta-se diminuir a prática dos crimes precedentes, por gerarem lucro. É, também, uma consolidação do Estado, como no caso dos Estados Unidos com Al Capone e Lansky, apesar de impotente para o combate de uma série de crimes graves, como o tráfico de drogas utilizou a lógica do “follow the Money”.
A lavagem de dinheiro envolve dissimulação os ativos de modo que eles possam ser usados sem que os possa identificar a atividade criminosa que os originou. Através da lavagem de dinheiro, o agente busca transformar os recursos monetários oriundos da atividade criminal em recursos com uma fonte aparentemente legítima.
Constitui não um único ato, mas um conjunto de operações comerciais ou financeiras que buscam a incorporação na economia de cada país dos recursos, bens e serviços que se originam ou estão ligados a atos ilícitos.
No referido crime, o lucro, de origem sempre ilícita (precedente de delitos que se revestem de especial gravidade) é investido, ocultado, substituindo ou transformado e restituído aos circuitos econômico-financeiros legais, incorporando em qualquer tipo de negócio como se fosse obtido de forma lícita. (GOMEZ, 1996, p. 50).
O delito de lavagem de dinheiro conforme tipificação legislativa consiste em “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de crime”, conforme art. 1°, caput, Lei 9613/98 – Lei de Lavagem de Dinheiro.
 Nessa primeira modalidade o agente altera a natureza ilícita do dinheiro, bens ou valores. Pode ocorrer com a conversão em ativos com a aparência de lícitos, negociação desses ativos, o superfaturamento. Após a prática do crime antecedente há o “branqueamento” do produto da conduta delituosa, dando-lhe aparência lícita e inserindo-o na economia.
Na segunda parte do tipo penal, o agente utiliza de qualidade no sistema econômico para garantir a ocultação ou dissimulação (art. 1º, §2º, inciso I).
Na terceira modalidade ampara-se aquele que se associa com o objetivo de executar a conduta principal da lavagem de dinheiro.
Hoje, percebe-se uma série de acordos internacionais visando coibir tal prática, até mesmo chegando há um controle financeiro que beira a ofensa à intimidade. Há uma nítida influência de natureza preventiva para a punição deste crime, dando à lavagem um formato instrumental, de modo que se justifica sua punição pela proteção ao bem jurídico do crime anterior por razões de dever de política e justiça criminal (SÁNCHEZ, El delito).
O crime de lavagem de dinheiro seria ponto de partida para punição do crime anterior, desestimulando sua prática, à medida que se veicula, através da lavagem, o rastro do delito ocorrido, claro reflexo de um direito penal de risco emergencialista, que procura a punição e tipificação de condutas como forma preventiva e limitadora.
Ora, a punição do crime anterior, se não possibilitou a persecução penal ou punição, tal é reflexo da incapacidade do estado para punição de crimes econômicos e da garantia da absolvição por falta de provas.
Porém, entende-se que o rastro ou prevenção podem ser feitos de forma administrativa ou tributária, sem previsão de pena grave como a do crime de lavagem de dinheiro. Grave porque se justifica pra punição de crime anterior, e de pos factum que por sua natureza é impunível, verdadeiro bis in idem.
No art. 180 do CP é previsto o crime de receptação. Aquele que oculta, transporta, vende, produto direto ou indireto do crime. Mas, o crime é previsto para aquele que pratica tão somente esta conduta, se o criminoso rouba e vende ou oculta, para assegurar a impunidade ou lucro, tal fato é no máximo exaurimento e há responsabilidade pelo crime de roubo, jamais de receptação e roubo.
Tal raciocínio é o mesmo no crime de lavagem de dinheiro, aquele que trafica ou pratica crime contra o sistema financeiro, por exemplo, e utiliza manobras para garantir a impunidade e o lucro, é exaurimento.
Punir o exaurimento como outro crime sob o argumento de proteção ao bem jurídico é excessivo e inconstitucional.
Com uma fiscalização tributária e administrativa séria, objetiva e moderna, a lavagem de dinheiro seria verdadeira forma de angariar impostos. O criminoso vê o prejuízo no patrimônio e no lucro, a verdadeira origem e intensão da prática desses crimes.
Esta inflação legislativa é claramente delineada pela doutrina como contraditória ao modelo constitucional de processo, ainda mais com uma total amplitude de condutas e incriminações no âmbito penal:
Ora, se o agente por meio de organização criminosa sonega impostos, conduta nesse caso prevista como crime precedente, em seguida, utiliza de manobras para ocultar a origem ilícita dos valores, como inserindo no sistema financeiro em uma conta corrente fantasma, evadindo divisas ou simulando a venda de obras de arte. No crime precedente, a ordem econômica já está sendo amparada. Então, qual a real necessidade de ser amparadas duas vezes? O agente gerou riqueza diante da sonegação e intenciona utilizar desses valores de forma impune. Como ocorre em qualquer crime contra o patrimônio.
Ou seja, o agente do crime de roubo que vende o produto, para ocultar a origem ilícita incide numa única conduta; o agente do crime de sonegação por organização criminosa que insere o valor no sistema financeiro para ocultar origem ilícita incide em mais de um crime, apesar de atingir o mesmo bem jurídico.
A lavagem de dinheiro poderia configurar uma modalidade de receptação, pois há a subtração ou retirada de um bem, cuja recuperação se torna dificultosa pelos atos descritos no tipo penal. Na Itália, por exemplo, o crime de lavagem de dinheiro é desdobramento do delito de receptação (art. 648).
A simples prática de um ato visando garantir o produto do crime classifica uma conduta como lavagem de dinheiro, percebendo-se uma grande desproporção entre um receptador e lavador de recursos do tráfico, apesar da conduta ser idêntica. O que traz tal desproporção é esse caráter simbólico e expansionista que possuem os crimes econômicos, além de um prestígio ao direito penal de autor.
A lei de lavagem de dinheiro cumpre muito mais uma razão de política criminal do que uma função de repressão propriamente dita. Como se trata de um crime de “colarinho branco”, o Direito Penal acaba por ser aplicado como forma de mostrar à sociedade a punição de uma camada de nível social mais elevado.
Não há como dissociar a lavagem de dinheiro dos crimes de receptação e favorecimento pessoal, por conta das particulares e semelhanças de fruição do produto do crime antecedente. Nesses dois delitos é uníssono o posicionamento que o sujeito que tenha praticado o crime precedente não será incriminado pelas condutas posteriores de usufruir, tirar proveito.
Trata-se de post factum impunível. Só é possível punição a titulo de crime consequente para o sujeito que não praticou o precedente:
“aquele que é condenado pelo crime antecedente não se pode impor o dever jurídico ou espontaneamente entregar ao Estado, para ser confiscado, o produto ou o proveito do crime pelo qual foi apenado. É contra a natureza das coisas o bom senso e até mesmo a lógica de punir o delinquente por ter- ele mesmo, sem ofender outros bens juridicamente tutelados, ocultado ou dissimulado a origem do dinheiro proveniente do crime que praticou e pelo qual está sendo punido. A conduta posterior é, portanto, atípica, a sua punição, ademais, importaria inadmissível bis in idem (DELMANTO, ET al Roberto. Leis penais comentadas. São Paulo: Renivar, 2006. )
A lavagem é, nesse entendimento, exaurimento do crime anterior, sendo punível nos casos em que seu sujeito ativo seja pessoa diversa daquela do crime precedente.
Assim, não obstante a necessidade de proteção da ordem econômica e dos chamados bens supra individuais, como se caracterizaria o crime de Lavagem de Dinheiro, não se pode admitir um conceito de segurança que passe pela violação das normas fundamentais.

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