segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Arbitragem na Administração Pública


Silvia Ferreira Persechini¹
João Luís Cesconi Lara²



¹ Sócia do Homero Costa Advogados, Pós-graduada e Mestre em Direito Empresarial
² Estagiário do Escritório Homero Costa Advogados, Graduando em Direito pela UFMG
*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 37 em 28/08/2011


Frente ao letárgico caminha processual observado no Poder Judiciário, bem como, muitas vezes, à falta de efetividade da prestação jurisdicional concedida à parte vencedora, os meios alternativos de composição de conflitos – conciliação, mediação e, para o presente estudo, a arbitragem – surgem como opção mais favorável à solução das mais variadas controvérsias.

No Brasil, a escolha pela arbitragem¹ é crescente na iniciativa privada e, mais especificamente, no meio comercial/empresarial². Adquiriu tamanha relevância que até mesmo o Estado foi um dos que reconheceram seus benefícios na solução de conflitos, em detrimento da própria jurisdição estatal.

Obviamente, essa recente escolha da Administração Pública conta com respaldo legal, como se observa no art. 54 da Lei Federal n. 8.666/1993, no art. 23, XV, da Lei Federal n. 8.987/1995, bem como na Lei Federal n. 11.079/2004, em seu art. 11, III. Tais dispositivos permitiram eleger a jurisdição arbitral para processar e julgar os litígios derivados de contratos administrativos, celebrados entre o ente estatal e a iniciativa privada.

Todavia, esse permissivo legal é cercado de discussão e controvérsia, residida, fundamentalmente, na pretensa oposição entre os interesses perpetuados e defendidos pelo Estado e sua disponibilidade para serem decididos por meio que não seja o judicial. Isso porque um terceiro (árbitro), não investido de prerrogativas e poderes estatais, decidiria temas que envolvem o interesse público.

Discutir-se-á, no presente estudo, para ratificar a possibilidade de submissão de controvérsias contratuais administrativas à jurisdição arbitral, (i) as matérias que podem ser submetidas à arbitragem, (ii) a permissão legal para tal submissão e, por fim, (iii) a disponibilidade de alguns interesses e direitos da Administração Pública em sede contratual.

Em primeiro lugar, quanto às matérias eventualmente submetidas à arbitragem, o art. 852, CC, dispõe vedações, principalmente no tocante a direitos não patrimoniais. Complementado essa determinação, o art. 1º da Lei de Arbitragem restringiu tais possibilidades, ao serem dirimidos apenas “os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis”.

A disponibilidade diz respeito à condição de o sujeito dispor, renunciar ou exercer direito de sua titularidade livremente, sem que esteja subordinado a norma jurídica que o impeça, “sob pena de nulidade ou anulabilidade do ato praticado com sua infringência”.³

Contudo, o mencionado conceito de disponibilidade não é absoluto. Isso porque, não obstante ser, a princípio, indisponível o direito (ex. direito de família – pagamento da pensão alimentícia), as questões litigiosas pecuniárias que envolvem a matéria (ex. quantum da pensão alimentícia) não o são4. Nesse caso, como se trata de direito patrimonial5, pode-se dele dispor, transigir, e, consequentemente, submetê-lo à arbitragem.

Quanto ao fato de submeter a Administração Pública à jurisdição não-estatal, cumpre ressaltar, inicialmente, que o Estado está adstrito ao cumprimento de princípios cogentes6 (art. 37, caput, CR). Dentre todos, o da legalidade exerce influência expressiva nos atos e decisões estatais, sendo até mesmo “diretriz básica da conduta dos agentes da Administração”7.

Pecam as Leis Federais nº 8.666/93 e 8.987/95 por conceberem a permissão ao uso da arbitragem mediante interpretação extensiva de suas normas, sem que haja determinação expressa. Por esse motivo, haveria ofensa ao princípio da legalidade. Entretanto, a Lei Federal nº 11.079/2004 trouxe, em seu texto, autorização expressa (art. 11, III), inclusive estabelecendo normas gerais para uso da arbitragem em licitações e contratos de parcerias público-privadas.

Desse modo, tem-se afastada a presunção de ofensa ao princípio da legalidade, pois devidamente expressa a autorização legal para submeter controvérsias contratuais à jurisdição arbitral.

Necessário, agora, demonstrar a disponibilidade de alguns interesses e direitos da Administração Pública, ainda que tenha como escopo principal efetivar e preservar o interesse público, pelo que ficaria subordinada, originariamente, a dois paradigmas: supremacia e indisponibilidade do interesse público.

A supremacia que, a priori, faria prevalecer o interesse público sobre o privado8, em matéria contratual, não é princípio absoluto. Isso porque, nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, o interesse público “nada mais é do que uma dimensão, uma determinada expressão dos direitos individuais, vista sob um prisma coletivo”9.

Com base nesse argumento, afastasse a supremacia do interesse público em alguns casos, pois os interesses individuais são fundamento para sua existência, bem como elementos indissociáveis à sua composição e, por esse motivo, há equiparação entre um e outro em determinadas situações.

Ainda, não se deve esquecer, como anteriormente afirmado, que o Estado se subordina à estrita legalidade. O interesse público, diante disso, não seria a busca pelo melhor entendimento legal favorável ao Estado, mas sim a efetivação e respeito às leis, na procura pela decisão justa e benéfica à coletividade.
No tocante à disponibilidade, a doutrina leciona haver dois tipos de interesse público, quais sejam: o primário e o secundário. Aquele, concerne à pratica de atos tendendo objetivamente ao cumprimento do interesse coletivo, ou seja, é o verdadeiro ofício da Administração Pública. Sob esse prisma se praticam os atos de império, dos quais o Estado goza de suas prerrogativas de autoridade.10

Por sua vez, o interesse público secundário trata-se de mero instrumento do qual a Administração Pública usa para a consecução satisfatória do interesse público primário. São os chamados atos de gestão11.

Dessa dualidade, observa-se que nem sempre o Estado, quando pratica seus atos, o faz gozando das prerrogativas de soberania, como elucida Luís Roberto Barroso12. Nos atos de gestão, o Estado se encontra em situação horizontal ao do particular, quando abre mão de seus privilégios e regalias, inerentes aos atos de império, para melhor garantir a execução dos interesses públicos primários.

Exemplo claro de ato de gestão reside na concessão de serviços públicos à iniciativa privada. O Estado, a quem a Constituição outorgou a obrigatoriedade da prestação de serviços públicos, de caráter indispensável, permite que o particular o faça, para a melhor consecução desses serviços, o que é a efetivação do interesse público primário.

Consoante o exposto, o contrato administrativo, ao estabelecer, por exemplo, a prestação de serviço público por um particular, abarca tanto o interesse público primário (prestação do serviço em si) quanto o secundário (contraprestação pecuniária estatal, cumprimento de cláusulas contratuais, entre outros). Neste, encontra-se parte da fundamentação para submeter controvérsias contratuais administrativas à arbitragem.

Logo, a patrimonialidade, concernente ao interesse público secundário, está presente nos contratos administrativos e permite às partes discuti-los na jurisdição arbitral, quanto a esse aspecto.

A jurisprudência13 já se manifestou favoravelmente acerca do assunto, inclusive por entendimento disseminado pelo STF no conhecido “Caso Lage”14. Quanto à doutrina, há inclusive recomendação que se opte pela arbitragem em detrimento à jurisdição estatal, razões acertadamente desenvolvidas pelo Excelentíssimo Ex-Ministro do STF, Eros Grau, verbis:

Não só o uso da arbitragem não é defeso aos agentes da Administração, como, antes, é recomendável, posto que privilegia o interesse público.Parece-me que a administração realiza muito melhor os seus fins e a sua tarefa, convocando as partes que com ela contratarem, a resolver as controvérsias de direito e de fato perante o juízo arbitral, do que denegando o direito das partes, remetendo-as ao juízo ordinário ou prolongando processo administrativo, com diligências intermináveis, sem um órgão diretamente responsável pela instrução do processo”.15

Frente ao exposto, não resta dúvidas da possibilidade de dirimir conflitos originados em contratos administrativos em sede de jurisdição arbitral, além de ser recomendável, pois não há violação ao princípio da indisponibilidade do interesse público, nem ao da legalidade, mas seu estrito cumprimento, ao se observar a celeridade e segurança jurídica que cercam o procedimento arbitral.16
__________
¹ Regida pela Lei Federal nº 9.307/96.
² Seminário sobre métodos alternativos de resolução de conflitos – Arbitragem Conciliação e Mediação. Sessão de abertura – Antônio Oliveira Santos (Presidente da Confederação Nacional do Comércio). Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2000. Disponível em <http://www.cnc.org.br/sites/default/files/arquivos/anais_seminario_metodos_alternativos_mediacao_conciliacao.pdf>. Visitado em: 29/08/2011. Também nesse sentido, v. notícia: “Arbitragem é opção para agilizar solução de impasses societários”. InFolha de S. Paulo, 10/07/2011. Disponível em: < http://www1.folha.uol.com.br/fsp/negocios/cn1007201106.htm >. Visitado em: 29/08/2011
³ Carmona, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. rev., atual. E ampl. São Paulo: Atlas, 2009, p. 38.
Carmona, Carlos Alberto. Ob. cit. p. 39, in verbis:“(..)se é verdade que uma demanda que verse sobre o direito de prestar e receber alimentos trata de direito indisponível, não é menos verdadeiro que o quantum da pensão pode ser livremente pactuado pelas partes (e isto torna arbitrável esta questão)”.
Sobre direito patrimonial, v.: PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil – Vol.1: Introdução ao direito civil: teoria geral do direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 335-342.
Sobre o tema, v.: CARAVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2010, pp. 20-45.
CARAVALHO FILHO, José dos Santos. Ob. cit. p. 21.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella , Direito Administrativo, 21ª ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 63-66
MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo, 27ª ed. São Paulo: Malheiros, p. 53
10 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit. p. 429-430.
11 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Ob. cit. p. 429-430.
12 "O interesse público primário é a razão de ser do Estado, e sintetiza-se nos fins que cabe a ele promover: justiça, segurança e bem-estar social. Estes são os interesses de toda a sociedade. O interesse público secundário é o da pessoa jurídica de direito público que seja parte em uma determinada relação jurídica – quer se trate da União, do Estado-membro, do Município ou das suas autarquias. Em ampla medida, pode ser identificado como o interesse do erário, que é o de maximizar a arrecadação e minimizar as despesas.” in: Prefácio à obra Interesses Públicos versus Interesses Privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público, 2ª tiragem, Lumen Juris, p. XIV. Nesse mesmo sentido, v.: Carmona, Carlos Alberto. Ob. cit. p. 45.
13 TCU, Rel. Min. Paulo Affonso Martins de Oliveira, Decisão n.º 188/65 – Plenário – Ata 18/95, Processo - TC n.º 006.0986/93-2, DOU de 22.5.95, pág. 7277.
14 STF – Agravo de Instrumento n. 52.181/GB, Agravante: União Federal, Agravados: Espólio de Renaud Lage e outros; Henry Potter Lage e Espólio de Frederico Lage.
15 V.: GRAU, Eros Roberto. Arbitragem e Contrato Administrativo, Revista Trimestral de Direito Público 32/200, Malheiros, pág.15

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