OBSERVAÇÕES
DE UM ADVOGADO SOBRE O ARTIGO 265 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Hassan
Magid de Castro Souki
Sócio de Homero Costa Advogados
A Lei 11.719/08, além de trazer várias
inovações no que diz respeito aos procedimentos ordinário e sumário, deu ao art.
265 do Código de Processo Penal a seguinte redação:
“Art.
265. O defensor não poderá abandonar o processo senão por motivo imperioso,
comunicado previamente o juiz, sob pena de multa de 10 (dez) a 100 (cem)
salários mínimos, sem prejuízo das demais sanções cabíveis.
§
1º A audiência poderá ser adiada se, por motivo justificado, o defensor não
puder comparecer.
§
2º Incumbe ao defensor provar o impedimento até a abertura da audiência. Não o
fazendo, o juiz não determinará o adiamento de ato algum do processo, devendo
nomear defensor substituto, ainda que provisoriamente ou só para o efeito do
ato.”
Assim, temos que, a partir de 22 de
agosto de 2008, abriu-se a possibilidade do juiz condenar o advogado que tenha
“abandonado o processo” ao pagamento de uma multa de dez a cem salários
mínimos.
Não é necessária muita reflexão para se
perceber que tal disposição é passível de severas críticas, constituindo,
ademais, verdadeiro atentado ao exercício da advocacia na seara criminal.
Inicialmente, tem-se que o artigo 265 do
Código de Processo Penal é pródigo em expressões vagas e equívocas, deixando ao
alvedrio do julgador determinar o que poderia ser entendido como sendo
“abandono de processo”, “motivo imperioso” ou “motivo justificado”, por
exemplo.
Ora, o grau de subjetividade permitido
pela norma em questão é assustador. Qual conduta constituiria “abandono de
processo”? O simples não comparecimento a ato processual? A não manifestação do
defensor em sede de alegações finais escritas?
Percebe-se que o princípio da
legalidade, na sua vertente da taxatividade, foi completamente desconsiderado
pelo legislador, vez que o artigo em análise não descreve de forma precisa a
conduta que é proibida ao advogado no curso do processo penal, o que traz
evidente insegurança jurídica, além de dar ensejo a arbitrariedades de toda a
sorte.
Apenas para exemplificar as nefastas
conseqüências da absurda redação do artigo 265 do Código de Processo Penal,
tem-se notícia de um advogado que foi condenado a pagar 50 (cinqüenta) salários
mínimos a título de multa por abandono de causa, mesmo tendo, com antecedência
de 15 (quinze) dias, informado ao juízo que não poderia comparecer à audiência
em virtude de Júri designado para o mesmo dia em comarca diversa. Obviamente
que o juiz não considerou tal motivo como “imperioso” ou “justificado”.
Ainda, existem decisões que não entendem
como “motivo imperioso” ou “motivo justificado” o inadimplemento dos honorários
contratuais pactuados. O advogado foi transformado, assim, no único
profissional que é obrigado a prestar seus serviços sem a devida remuneração,
sob pena de, além de ficar sem seus honorários, ser multado em, pelo menos, 10
(dez) salários mínimos.
Também se exige que o advogado comunique
previamente ao juízo acerca do “motivo imperioso” pelo qual “abandonará o
processo”. Questiona-se: qual o prazo entre a comunicação e o efetivo
“abandono”? Seria o prazo de 10 (dez) dias, consoante disposição do art. 3º,
§4º da Lei 8.906/94? Ficaria tal prazo também ao alvedrio do juiz?
Tem-se ademais que, segundo se infere do
artigo 265 do Código de Processo Penal, ao verificar o “abandono de causa”, o
juiz condenará o advogado ao pagamento de multa, sem antes dar a este a
oportunidade de explicitar as razões de seu “abandono”. Tal absurdo é o que, desde
a edição da Lei 11.719/08, até os dias atuais, vem ocorrendo na prática.
A questão que se coloca é a seguinte:
não se faz necessária a prévia instauração do contraditório e a oportunização
da defesa antes de uma decisão condenatória? E como fica o disposto no art. 5º,
LV da Constituição Federal?
Ora, deve-se atinar que o advogado não é
parte do processo. Sendo ele terceiro não envolvido na lide, absurda se revela
a imposição de sanção, já que não teve oportunidade de contradizer a imputação
de “abandono de causa” e de se defender, expondo as suas razões. É de se
perguntar: voltamos à Idade Média?
E nem se diga que se trata de mera
“sanção administrativa”, pois, mesmo assim, necessário se faz, além do prévio
contraditório e a ampla defesa, o devido processo legal, sendo o artigo 5º, LIV
da Constituição Federal de uma clareza solar.
Se “ninguém será privado de sua
liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”, como se admitir que a
fixação de multa se dê nos moldes do artigo 265 do Código de Processo Penal?
De fato, a Constituição Federal, no
artigo 5º, LIV e LV impossibilita a responsabilidade objetiva por ato
infracional disciplinar, exigindo que haja a devida apuração de sua prática em
um processo desenvolvido na forma prevista na lei, onde seja dada ao advogado a
oportunidade de participar na construção da decisão, expondo suas razões e se
defendendo de forma ampla.
Pode-se também questionar: sendo
condenado ao pagamento de multa, como poderá o advogado impugnar tal decisão?
Não há na lei processual previsão de recurso contra a condenação por “abandono
de causa”, sendo que se tem entendido que o defensor não pode se utilizar de
nenhum daqueles previstos no CPP.
Aqui se tem um verdadeiro paradoxo. O
advogado, por não ser parte do processo, não pode se utilizar dos recursos que
a lei processual faculta aos envolvidos no litígio para impugnação de decisões,
mas pode, conforme já visto, nos autos do processo do qual não é parte, ser
condenado ao pagamento de multa.
Ante a impossibilidade da interposição
de recurso, o que se tem visto na prática é a interposição de mandado de
segurança. Todavia, cabe ressaltar que existem decisões no sentido de ser
incabível tal ação mandamental.
Pode-se vislumbrar então, a hipótese de
um advogado, condenado a pagar multa por “abandono de causa”, ver-se
impossibilitado de impugnar tal decisão. Basta, para tanto, que o órgão
julgador tenha o entendimento acima exposto. Absurdo total.
Tem-se, ainda, que o artigo 265 do
Código de Processo Penal dispõe que a multa poderá ser fixada entre 10 (dez) a
100 (cem) salários mínimos, todavia, não prevê como deve ser dar a fixação do
valor pelo magistrado. Mais uma vez, fica-se à mercê do julgador que poderá
determinar o pagamento de uma multa no importe que “lhe der na cabeça”.
Ressalte-se, a lei não determina qual o
procedimento a ser adotado para a fixação do valor da multa, sendo dada, assim,
ao magistrado a possibilidade de fixar o valor que bem entender, de forma
arbitrária, “de acordo com o seu bom ou mau humor”.
Ademais, o que se tem presenciado é a
fixação da multa pelo juiz sem qualquer tipo fundamentação. Na maioria das
vezes, o que se tem é algo como o seguinte “determino o pagamento de multa no
valor de xxx salários mínimos ao Dr xxxxxxxxx, oab xxxx, pela ausência
injustificada em audiência, pelo abandono injustificado do processo etc”.
Ora, e como fica a disposição do art.
93, IX da Constituição Federal que dispõe que toda decisão judicial deverá ser
fundamentada? O que se verifica atualmente é a determinação do pagamento de uma
multa de valor bastante considerável sem que haja a menor justificativa, seja
da condenação em si, seja da fixação do valor.
Não se pode olvidar que o valor previsto
no artigo em comento é extremamente alto. Não teve o legislador a compreensão
de que 90% (noventa por cento) dos advogados exerce sua profissão de forma
individual ou como integrantes de pequenos escritórios. A condenação ao
pagamento de multa no patamar previsto na lei poderia significar a falência do
advogado, com o comprometimento de todos os seus bens.
Absurda ainda é a sujeição do advogado
ao juiz, como se houvesse entre eles relação de hierarquia ou subordinação. Sob
o atual arcabouço normativo, somente o Tribunal de Ética e Disciplina da Ordem
dos Advogados do Brasil pode censurar legitimamente o advogado, sendo que a
disposição do artigo 265 do Código de Processo Penal nada mais é do que uma
excrescência jurídica, usurpando do juízo natural a análise da conduta
ético-profissional do advogado.
Por fim, há que se questionar também
acerca da finalidade da norma em comento. O que parece é que o advogado foi
eleito como o grande responsável pela falta de celeridade do processo penal,
sempre pronto a procrastinar o feito, motivo pelo qual deve ser tolhido em sua
atuação com a ameaça de sanção patrimonial severa.
É, no mínimo, curioso. Elegeu-se um
“bode expiatório”, mesmo sabendo-se (disso ninguém duvida) que o maior óbice à
razoável duração do processo é a existência dos prazos impróprios.
Retrocessos como o representado pelo
artigo 265 do Código de Processo Penal somente levam à conclusão de que o réu
e, por extensão, seu defensor, são “estorvos” processuais, devendo ser “levados
na coleira” pelo juiz para que não prejudiquem a condenação do acusado. Tal
visão tacanha e absurda do processo penal infelizmente é compartilhada pelo
legislador e pela maioria dos juízes, afirmação essa comprovada cotidianamente
na lide forense.
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