Hassan
Magid de Castro Souki
Sócio de Homero Costa Advogados
O
Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Habeas Corpus nº 126.292, ocorrido
no dia 17 do mês passado, decidiu, por maioria de votos (7 a 4), ser possível a
execução da pena depois de decisão condenatória confirmada em segunda
instância, alterando o até então entendimento da Corte de que a sentença só
poderia ser executada após o trânsito em julgado da condenação.
O
relator, Ministro Teori Zavascki, argumentando no sentido da mudança da
jurisprudência e de que a execução da decisão condenatória confirmada em
segunda instância, ainda que sujeita a recurso especial ou extraordinário, não
comprometeria o princípio constitucional da presunção de inocência, asseverou
em seu voto que:
“(...),
a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não
compromete o núcleo essencial do pressuposto da não culpabilidade, na medida em
que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário
criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como
respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é
incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que
cabíveis ou pendentes de julgamento de recursos extraordinários, a produção dos
efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias
ordinárias.
(...)
Nesse
quadro, cumpre ao Poder Judiciário e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal,
garantir que o processo - único meio de efetivação do jus puniendi estatal -,
resgate essa sua inafastável função institucional. A retomada da tradicional
jurisprudência, de atribuir efeito apenas devolutivo aos recursos especial e
extraordinário (como, aliás, está previsto em textos normativos) é, sob esse
aspecto, mecanismo legítimo de harmonizar o princípio da presunção de inocência
com o da efetividade da função jurisdicional do Estado. Não se mostra
arbitrária, mas inteiramente justificável, a possibilidade de o julgador
determinar o imediato início do cumprimento da pena, inclusive com restrição da
liberdade do condenado, após firmada a responsabilidade criminal pelas
instâncias ordinárias.
(...)
Sustenta-se,
com razão, que podem ocorrer equívocos nos juízos condenatórios proferidos
pelas instâncias ordinárias. Isso é inegável: equívocos ocorrem também nas
instâncias extraordinárias. Todavia, para essas eventualidades, sempre haverá
outros mecanismos aptos a inibir consequências danosas para o condenado,
suspendendo, se necessário, a execução provisória da pena. Medidas cautelares
de outorga de efeito suspensivo ao recurso extraordinário ou especial são
instrumentos inteiramente adequados e eficazes para controlar situações de
injustiças ou excessos em juízos condenatórios recorridos. Ou seja: havendo
plausibilidade jurídica do recurso, poderá o tribunal superior atribuir-lhe
efeito suspensivo, inibindo o cumprimento de pena. Mais ainda: a ação
constitucional do habeas corpus igualmente compõe o conjunto de vias
processuais com inegável aptidão para controlar eventuais atentados aos
direitos fundamentais decorrentes da condenação do acusado. Portanto, mesmo que
exequível provisoriamente a sentença penal contra si proferida, o acusado não estará
desamparado da tutela jurisdicional em casos de flagrante violação de
direitos”.
Tal entendimento foi acompanhado pelos
Ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen
Lúcia e Gilmar Mendes.
A divergência foi inaugurada pela
Ministra Rosa Weber, sendo seguida pelos Ministros Marco Aurélio, Celso de
Mello e Ricardo Lewandowski que, em seus votos, mantiveram o entendimento até
então prevalente de que a sentença condenatória somente poderia ser executada
após seu trânsito em julgado.
O Ministro Celso de Mello, ao se
pronunciar sobre a questão, enfatizou que:
“(...)
o Supremo Tribunal Federal há de possuir a exata percepção de quão fundamentais
são a proteção e a defesa da supremacia da Constituição para a vida do País, a
de seu povo e a de suas instituições. A nossa Constituição estabelece, de
maneira muito nítida, limites que não podem ser transpostos pelo Estado (e por
seus agentes) no desempenho da atividade de persecução penal. Na realidade, é a
própria Lei Fundamental que impõe, para efeito de descaracterização da
presunção de inocência, o trânsito em julgado da condenação criminal. Veja-se,
pois, que esta Corte, no caso em exame, está a expor e a interpretar o sentido
da cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência, tal como
esta se acha definida pela nossa Constituição, cujo art. 5º, inciso LVII
(“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”), estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente
perderá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da
sentença penal condenatória. É por isso que se mostra inadequado invocar-se a
prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França,
entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa,
não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação
criminal. Mais intensa, portanto, no modelo constitucional brasileiro, a
proteção à presunção de inocência. Quando esta Suprema Corte, apoiando-se na
presunção de inocência, afasta a possibilidade de execução antecipada da
condenação criminal, nada mais faz, em tais julgamentos, senão dar ênfase e
conferir amparo a um direito fundamental que assiste a qualquer cidadão: o direito
de ser presumido inocente até que sobrevenha condenação penal irrecorrível.
Tenho para mim que essa incompreensível repulsa à presunção de inocência,
Senhor Presidente, com todas as gravíssimas consequências daí resultantes,
mergulha suas raízes em uma visão absolutamente incompatível com os padrões do
regime democrático”.
Ainda que alguns entendam que a nova
orientação do Supremo Tribunal Federal constitua um avanço no combate à
“impunidade” e sirva como instrumento para a “redução da criminalidade”,
percebe-se que a modificação do entendimento até então prevalente constitui um
verdadeiro ataque à garantia fundamental da presunção de inocência, sendo,
assim, um retrocesso lamentável.
De fato, o texto constitucional é claro
no sentido de que a sentença condenatória só pode ser executada depois do seu
trânsito em julgado, ou seja, quando não exista mais possibilidade de recurso.
Assim, se há recurso pendente de julgamento, a decisão, ainda que confirmada em
segunda instância, não transitou em julgado e, portanto, não há possibilidade
punição do autor do fato, que ainda deve ser presumido inocente!
A referida mudança de entendimento se
trata de verdadeiro “malabarismo hermenêutico” do Supremo Tribunal Federal que,
lamentavelmente, parece ter deixado de lado a defesa da Constituição Federal e
do Estado Democrático de Direito para atender os conclames das ruas, proferindo
decisões com nítido fundamento político e casuístico.
Claramente trata-se de um retumbante
erro histórico do Supremo Tribunal Federal cujos impactos poderão ser severos
(o aumento da população carcerária fatalmente será um deles) e, portanto, como
sugerido por Alexandre Morais da Rosa, “nós devemos guardar os nomes daqueles
que fizeram essa revisão para que a história possa um dia julgá-los como
sujeitos que inverteram a lógica de uma democracia construída com ferro e
fogo.”
Por fim, pertinente se revela a
advertência de José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, presidente do Colégio de
Presidentes dos Institutos dos Advogados do Brasil:
“A
ausência de espírito público e a avassaladora crise de legitimidade dos Poderes
Executivo e Legislativo não autorizam o Poder Judiciário, numa semana,
reinterpretar o comando constitucional para determinar a prisão antes do
trânsito em julgado (...).
A
história está farta de episódios demonstrando que não se combatem excessos com
restrição à liberdade”.
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