quinta-feira, 17 de setembro de 2020

ABORTO EM CASO DE ESTUPRO

 

Mariana Cardoso Magalhães

Advogada Sócia de Homero Costa Advogados

 

 

 

Há muito tempo a legislação penal brasileira permite a realização da interrupção de uma gravidez de feto gerado pelo ato criminoso do estupro (artigo 213 do Código Penal), não havendo qualquer consequência criminal ao médico que o realiza, sendo direito da mulher violentada.

 

Em casos recentes no Brasil reacenderam esta questão devido aos envolvimentos religiosos que uma parte da sociedade argumenta em conectar à legislação vigente, buscando a sua modificação.

 

Em 27 de agosto de 2020 foi publicada a Portaria nº 2.282[1] do Ministério da Saúde com novas obrigatoriedades no ato do procedimento médico do aborto, objetivando a geração de mais segurança jurídica ao profissional de saúde. São as modificações:

 

a)    É obrigatória a notificação à autoridade policial pelo médico (que já era prevista pelo Decreto-Lei de Contravenções Penais – nº 3.688/41 -, artigo 66), demais profissionais de saúde ou responsáveis pelo estabelecimento de saúde que acolheram a paciente dos casos em que houver indícios ou confirmação do crime de estupro;

b)    Os profissionais deverão preservar possíveis evidências materiais do crime de estupro a serem entregues imediatamente à autoridade policial;

c)    O Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei compõe-se de quatro fases que deverão ser registradas no formato de termos, arquivados anexos ao prontuário médico, garantida a confidencialidade desses termos;

d)    A primeira fase será constituída pelo relato circunstanciado do evento, realizado pela própria vítima, perante 2 (dois) profissionais de saúde do serviço;

e)    O Termo de Relato Circunstanciado deverá ser assinado pela vítima ou, quando incapaz, também por seu representante legal, bem como por 2 (dois) profissionais de saúde do serviço;

f)    A segunda fase se dará com a intervenção do médico responsável que emitirá parecer técnico após detalhada anamnese, exame físico geral, exame ginecológico, avaliação do laudo ultrassonográfico e dos demais exames complementares que porventura houver;

g)    Três integrantes, no mínimo, da equipe de saúde multiprofissional subscreverão o Termo de Aprovação de Procedimento de Interrupção da Gravidez, não podendo haver desconformidade com a conclusão do parecer técnico;

h)    A equipe de saúde multiprofissional deve ser composta, no mínimo, por obstetra, anestesista, enfermeiro, assistente social e/ou psicólogo;

i)     Na segunda fase procedimental a equipe médica deverá informar acerca da possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de ultrassonografia, caso a vítima deseje, e essa deverá proferir expressamente sua concordância, de forma documentada;

j)     A terceira fase se verifica com a assinatura da gestante no Termo de Responsabilidade ou, se for incapaz, também de seu representante legal, e esse termo conterá advertência expressa sobre a previsão dos crimes de falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal), caso não tenha sido vítima do crime de estupro;

k)    A quarta fase se encerra com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que conterá (i) o esclarecimento à mulher deve ser realizado em linguagem acessível; (ii) deverá ser assinado ou identificado por impressão datiloscópica, pela vítima ou, se for incapaz, também por seu representante legal; e (iii) deverá conter declaração expressa sobre a decisão voluntária e consciente de interromper a gravidez.

 

Ao contrário do que parece e do que foi, ao que parece, a intenção do Ministério da Saúde na criação de mais passos dentro deste procedimento, medidas como tornar dever do médico o requerimento detalhado do ato do estupro (que nada se relaciona com o trabalho que será realizado pelo profissional da saúde), ou a obrigação do médico em questionar à vítima se ela deseja visualizar o ultrassom do feto gerado por violência, acabou por burocratizar, ainda mais, o procedimento; gerar nova violência e constrangimento à vítima; como também a ampliar da obrigação do profissional da saúde, aumentando o receio deste na realização do procedimento, o que é completamente contrário à intenção de gerar segurança jurídica e médica.

 

Essa foi uma das críticas e do receio de muitos profissionais, tanto do Direito quanto da Medicina, mas também do senador Humberto Costa que, inclusive, quando foi Ministro da Saúde, nos anos 2003 a 2005, havia editado portaria que revogava a obrigatoriedade da vítima em registrar o Boletim de Ocorrência para conseguir realizar o procedimento de aborto[2].

 

Vale ressaltar que o momento em que uma mulher busca por auxílio para a interrupção de uma gravidez gerada por um estupro é necessário que o profissional da saúde seja o provedor do acolhimento ao sofrimento que esta já vem sofrendo, e não o amplificador de sua dor.

 

De certo ainda há muito que se discutir quanto ao tema, que por si só é polêmico perante a sociedade brasileira, mas também é preciso reconhecer que aumentar a responsabilidade do médico na realização do procedimento, bem como submeter a vítima a passar por uma série burocrática de perguntas e formulários a serem preenchidos, não assegurará que o aborto ilegal não ocorra no Brasil, muito pelo contrário, poderá ser o gatilho para a ampliação dos nascimentos de fetos gerados através de violência, bem como do abandono de muitas crianças, porque as vítimas se sentirão mais coagidas a realizar o aborto, assim como mais médicos recusarão realizar a interrupção, por receio das responsabilidades que poderão ser debitadas a eles.

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