quarta-feira, 24 de julho de 2013

Duplicata e boleto bancário

Silvia Ferreira Persechini

Advogada, especialista em Direito de Empresas pela PUC/MG e mestranda em Direito de Empresa pela na Faculdade de Direito Milton Campos 


*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 01, em 08/05/2008


Nos termos da Lei 5.474/68, a duplicata é o único título de crédito que pode documentar a operação faturada de compra e venda ou de prestação de serviços. Ela deve ser emitida juntamente com a nota fiscal/fatura que discrimina, dentre outras informações, as mercadorias ou os serviços e os seus respectivos valores.


Todavia, hodiernamente, em razão do desenvolvimento da tecnologia, é costume, no mundo dos negócios, a realização de compra e venda e/ou de prestação de serviços sem a emissão da duplicata.


O vendedor ou o prestador de serviços, por meio de seu computador, preenche, com os dados de uma duplicata inexistente, um formulário virtual disponibilizado por instituição financeira. Esse procedimento dá origem a um boleto bancário. Posteriormente, o banco remete esse boleto ao devedor para cobrança, e, na hipótese de não haver pagamento, a instituição financeira, com a autorização do credor, protesta tal documento por indicação. Ou seja, apresenta ao cartório o simples aviso de cobrança, tirando o protesto com base nas informações nele contidas.

A jurisprudência e a doutrina apresentam entendimentos divergentes com relação à legalidade de se efetuar o protesto na situação descrita acima.

Consoante os termos do artigo 1°, da Lei n° 9.492/97, é certo que o protesto deixou de abranger apenas os títulos de crédito, modernizando o seu próprio conceito ao permitir que também outros documentos de dívida possam ser protestados. No entanto, o legislador não definiu o que seria um documento de dívida nem esclareceu qual ou quais seriam os requisitos necessários para que esse documento pudesse servir de sustentáculo ao protesto, o que contribui para a divergência doutrinária e jurisprudencial sobre a questão ora intitulada.


O credor de um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços pode ser prejudicado ao tentar cobrar o seu crédito, por meio da emissão de boleto bancário, caso a instituição financeira, com a sua autorização, leve a protesto esse documento, sem a efetiva emissão da duplicata. Isso pode ser concretizado ainda que o credor possua a respectiva nota fiscal/fatura.

Há o entendimento de que nem o boleto bancário nem a nota fiscal seriam documentos passíveis de protesto. Assim, o credor pode ser vencido em uma ação cautelar de sustação de protesto ou numa ordinária de cancelamento. Pior, sem a emissão da duplicata, ele não terá embasamento legal para um procedimento executivo. Essa compreensão é consubstanciada na seguinte jurisprudência:

APELAÇÃO CÍVEL - NOTA FISCAL - INEXISTÊNCIA DA RESPECTIVA DUPLICATA - IMPOSSIBILIDADE DE PROTESTO - INEXIGIBILIDADE DE OBRIGAÇÃO - NÃO COMPROVAÇÃO. A simples nota fiscal não enseja apontamento de protesto, por não constituir título de crédito. A emissão de nota fiscal sem remessa do título para aceite ofende o direito do sacado de realizar a recusa legal a que se referem os artigos 8º e 21 da Lei 5.474/68; O não atendimento do ônus de provar coloca a parte em desvantajosa posição para a obtenção do ganho de causa. A produção probatória, no tempo e na forma prescrita em lei, é ônus da condição de parte. A prova das alegações cabe a quem alega o fato. Inteligência do art. 333, I do CPC [TJMG. Autos n° 2.0000.00.419056-9/000(1). Rel. Domingos Coelho. DJ. 10.03.2004].

Por outro lado, há quem entenda que, apenas com o boleto bancário e/ou a nota fiscal, poderá haver o protesto por indicação. Esse conceito origina-se dos termos do parágrafo único, do artigo 8°, da Lei de Protesto, que assim dispõe: “poderão ser recepcionadas as indicações a protestos das Duplicatas Mercantis e de Prestação de Serviços, por meio magnético ou de gravação eletrônica de dados, sendo de inteira responsabilidade do apresentante os dados fornecidos, ficando a cargo dos Tabelionatos a mera instrumentalização das mesmas”.

Com efeito, a corrente que tem esse entendimento considera que esses boletos bancários originados de documentos virtuais emitidos pelo credor seriam uma forma de “duplicata virtual”, o que viola a própria Lei de Duplicatas. Por exemplo, nos termos do artigo 6°, da Lei 5474/68, a duplicata, salvo quando tiver vencimento à vista (neste caso será apresentada diretamente para pagamento), deverá ser apresentada para aceite para que o sacado possa exercer o seu direito de recusa, nas hipóteses previstas nos arts. 8° e 21, da Lei n° 5.474/68, sob pena do credor se responsabilizar pelos eventuais prejuízos decorrentes da falta dessa apresentação.


Sobre essa praxe de não emitir a duplicata, o Prof. Wille Duarte Costa (2006) explica que:

[...] o costume já generalizado tem feito com que nenhuma duplicata seja extraída, mas em lugar dela enviem um “boleto” ou aviso de cobrança, sem assinatura de quem quer que seja, ficando o devedor sem saber se a Instituição Financeira é mandatária do sacador, pois não há endosso-mandato; nem se ela é legítima possuidora do título, uma vez que não há naquele papel qualquer endosso. Aquele “boleto” fere em tudo a Lei de regência, pois até falsamente diz referir-se a uma duplicata, cujo número indica. Sua quitação, em verdade, não passa de uma impressão de máquina própria, sem qualquer assinatura do recebedor. Isto é procedimento ilegal. Esse absurdo, sem sentido, é que a doutrina marginal tem entendido tratar-se de “duplicata virtual” ou “duplicata escritural” [COSTA, Wille Duarte. Títulos de Crédito. 2.ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 408].

É fato que, nos tempos modernos em que vivemos, a cobrança por meios eletrônicos, sem a emissão de papel, é uma realidade intransponível. Porém, a prática atual do mercado de não se extrair efetivamente a duplicata - ensejando o protesto por indicação, ou seja, aquele realizado apenas com as informações sobre a relação causal e com a apresentação de boleto bancário e/ou nota fiscal e fatura - viola o texto da lei especial. Conforme o § 1°, do artigo 13, da Lei de Duplicatas, o protesto por indicação somente será possível quando a duplicata tiver sido retida pelo sacado. Isto é, de qualquer forma, nos termos da lei, a duplicata precisa existir.

Ademais, a própria Lei de Protesto, em seu § 3°, do art. 21, esclarece que o protesto por indicação de duplicata apenas poderá ocorrer quando este título não tiver sido devolvido pelo sacado.

Ainda, é inadmissível entender que mencionado boleto bancário seria uma espécie de “duplicata virtual”, porque, nos termos do art. 889, § 3°, do Código Civil, o título pode ser emitido, virtualmente, desde que contenha a data de emissão, a indicação precisa dos direitos que confere e a assinatura do emitente.

Tal boleto bancário não contém a assinatura do emitente nem sequer na forma criptografada. Portanto, podemos dizer que a corrente que entende ser possível o protesto por indicação de boleto bancário e/ou nota fiscal está em confronto com a legislação em vigor, ainda que se conclua que tais documentos sejam passíveis de protesto. A uma porque o boleto bancário não se confunde com uma duplicata; a duas porque a própria Lei de Protesto, em seu art. 21, esclarece que o protesto por indicação é possível apenas quando a duplicata for retida pelo sacado, corroborando com o disposto na Lei 5.474/68.

Assim, apesar de ser usual e prática a emissão somente de boletos bancários para cobrança de débito advindo de negócio de compra e venda ou de prestação de serviços, deve o respectivo credor ter o cuidado de emitir o título, nos termos da Lei de Duplicata, sob pena de ser vencido em um eventual processo de indenização ou de sustação/cancelamento de protesto, caso o devedor não pague o mencionado boleto e a instituição financeira, com a autorização do credor, realize o protesto por indicação. Ademais, frise-se que apenas com a emissão da duplicata é que o credor, caso necessário, poderá propor um procedimento executivo contra o devedor.

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¹ Art. 1º Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.


² Art  8º O comprador só poderá deixar de aceitar a duplicata por motivo de:

I - avaria ou não recebimento das mercadorias, quando não expedidas ou não entregues por sua conta e risco;

II - vícios, defeitos e diferenças na qualidade ou na quantidade das mercadorias, devidamente comprovados;

III - divergência nos prazos ou nos preços ajustados.

Art.21. O sacado poderá deixar de aceitar a duplicata de prestação de serviços por motivo de:

I - não correspondência com os serviços efetivamente contratados;

II - vícios ou defeitos na qualidade dos serviços prestados, devidamente comprovados;

III - divergência nos prazos ou nos preços ajustados.


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