segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Mediação Para Quê?

Rita Andréa Guimarães Carvalho Pereira


Psicóloga, Mestranda na Maestria Latino Americana Europea em Mediacion y Negociacion
*publicado originalmente no Boletim Jurídico N.º 40 em 29/02/2012

Mediação, conciliação, virou assunto de televisão. Nomes que adentram nossos lares instam nova situação. A que vem?

A mediação, como método de prevenção e solução consensual de conflitos, foi institucionalizada e disciplinada por alteração de texto no Projeto de Lei 4.827-b, de 1998.
Segundo o dicionário Aurélio¹, mediação é:
 Interferência destinada a provocar um acordo. Procedimento do Direito, que propõe uma solução às artes em litígio, sem contudo a impor, como acontece nos processos de arbitragem.
Filosofia. Processo pelo qual o pensamento tira uma conclusão, dados os elementos fornecidos pelos sentidos.
Assim dito, cabe dizer:
Mediação é o “sistema alternativo não excludente de resolução de conflitos, em que as partes assistidas por um terceiro neutro, são orientadas no processo de tomada de decisões com relação a seu desacordo. Trata-se de um processo voluntário, confidencial, flexível, onde as decisões auto compostas estão focadas no futuro, onde se enfatiza as necessidades reais dos participantes.”²
Decisões autocompostas é conceito trazido do direito primitivo: um método de resolução de conflitos segundo o qual os litigantes abrem mão, total ou parcialmente, de seus interesses.
O que seria,então, mediação? Uma nova prática? Um novo paradigma? Uma interferência que surge clamando escuta e inclusão? Que opera dentro de um paradigma pacífico, promovendo  a flexibilidade e, portanto, procura  recriar um futuro com novos significantes para o significado da contenda  inicial? Tudo isso!
Antes de discorrer acerca da mediação, gostaria de ir ao seu nascedouro, delinear o objeto que ocasionou sua criação como dispositivo: O conflito.
Importante situar o conceito de conflito ao qual me refiro. Conflito é parte constituinte e comum ao gênero humano, fonte estruturante do ser.
Freud, em 1920, postulou como base para o conflito psíquico a existência de uma ação mutuamente oposta entre pulsão de morte e pulsão de vida. Com efeito, a compreensão dos fenômenos humanos deve levar em conta, no entendimento do autor,a ação concorrente, ou mutuamente oposta, entre essas duas pulsões³. E o conflito situa-se nas normas impostas pela cultura e suas divergências com nossos desejos.
Conflito aqui, neste contexto, diz-se daquele que acontece nas relações interpessoais, qualquer seja o cenário que se apresente: familiar, empresarial, comunitário, internacional. Trata-se aqui do conflito de um sujeito em relação a outro.
Desde sempre as relações interpessoais são estímulos que trazem em si situações de divergência e ou convergência. As diferenças de pensamentos e desejos não dizem respeito ao conflito, nem será matéria dessa abordagem, mas sim à circunstância de não serem toleradas e, como consequência, as demandas geradas a partir daí são a fonte motriz desse cenário. Fonte do conflito, objeto da mediação.
Na sociedade atual aprendemos e somos estimulados a ver o mundo sob a ótica do certo e errado, do vencedor e vencido. Entendemos, então, que fazer prevalecer nossa idéia é fonte de sucesso e realização, razão pela qual desenvolvemos uma forma excludente de pensar.
Até então tínhamos em mente que a teoria geral do direito respondia e solucionava todos os enfrentamentos sobre pretensões opostas.
Apesar de todo o progresso, é inevitável que o sistema jurídico, na modalidade até então desenvolvida, reforçado pelo pensamento de Kelsen, de que o que não está juridicamente proibido está permitido, reforce um pensamento biunívoco e resolva os conflitos declarando a vitória de um sobre o outro. 
Para além do jurídico, ser vitorioso é calcado na ideia de sucesso tão cultivada na modernidade: Ganhar do outro. Por vezes nem se sabe se o desejo é mesmo de ganhar ou de fazer o outro perder (onde começa o desejo de ganhar e termina o desejo de fazer o outro perder). Ávidos por ganhar nem se sabe o que se foi buscar. Como se houvesse uma imbricação entre ser demandante e litigante.
Assim, por melhor que seja a conduta e resolução de um conflito, não há como evitar a deterioração dos vínculos que constituem as relações de quem se submeteu à controvérsia.
Quem sabe a mediação, com sua proposta pacificadora, traga a chance de pacificar algo da dor? Palavra dita fica menos maldita. Escuta de terceiro eleito. Quem sabe? 
Somos sujeitos de linguagem. Assim, constituídos por ela, vamos construindo a narrativa de nossas histórias.
Na formatação convencional de resolução de conflitos a palavra ocupa que lugar?
Os integrantes do conflito velam sua participação quando passam a ser velados por aquele que detém o saber da Lei, entregam-lhe o poder da solução, da resolução, de sua própria ação. Desvelam destituição do lugar de protagonistas.    Omissos ou artistas. Por vezes é determinada a melhor forma de apresentação. Neste caso, a palavra tem a forja do que deve ser dito, de como entende, por exemplo, a melhor forma para se dizer ou silenciar, o advogado de cada parte, bem como todo um linguajar próprio carregado de tecnicismo. As partes, passivamente, se colocam para que um outro leve ao outro sua história através dos advogados.
História entregue! Sujeito passivo acomodado. Quantas releituras de uma história, narrativa recontada. Fatos são apresentados. Personagens, “atorizados”, autorizados pelo outro na forma de dizer suas próprias histórias.
Grande mudança com a mediação. Releitura, o silêncio imperativo, tecnicismo, ônus da prova e a data venia são objetos desconhecidos. O dito ou desdito fazem parte da narrativa, construção dos próprios integrantes do conflito.
Na narrativa se encontra a grande especificidade da mediação, vez que é com a narrativa que a mediação trabalha, e não com os fatos.
Mesmo sabendo que cada parte tem sua “verdade” e sob a égide da mesma faz sua demanda, a presença do mediador, pessoa eleita e aceita pelas partes, traz consigo a premissa da imparcialidade, da confiabilidade, permitindo que, para além de conectar-se com a própria narrativa, exista a narrativa do outro. Nesse sentido, o mediador tem função especular. Tal configuraçãotraz a chance de revisãoacada parte, de si mesmo e do outro, conhecendo de forma clara versões que atéaqui ocuparam lugar de  aversões.
O mediador tem a escuta como sua primordial ferramenta, o que o auxilia a perceber as partes como elas vêem a si e ao outro. Parafrasear por vezes nos traz a chance de escutar o que dissemos de um outro lugar. Devoluto da visão. Tempo e lugar.
Quanto tempo a fixidez, partes enxergando apenas parte, única versão, ponto de vista, de um mesmo lugar.
O tempo, na mediação e na justiça comum, também é determinado por sujeitos distintos. O tempo na justiça comum tem nos prazos, nos tempos processuais, seu pano de fundo. Na mediação, por sua vez, o tempo é dito através da narrativa pessoal e seus processos internos. Procura-se um tempo breve, intenso, condensando fonte e fruto de análise dos próprios integrantes do processo.
A justiça representada pelo Outro lê a narrativa escrita e determina o tempo e a sentença.
Fim do processo. Fim do processual, não do processo. E o conflito, foi  encerrado? O  conflito pode estar obnubilado.
Quando os vínculos se mantêm perpetuam-se aí os incômodos que não foram deflagrados no significado da demanda. Nossa experiência psicanalítica afirma que o objeto da demanda nem sempre é o objeto em questão.O conflito repercute em diferentes âmbitos da vida do sujeito, tendo assim vários aspectos de um só conflito. O conflito manifesto expressa o conteúdo latente. Vale marcar que os conflitos não só estão determinados por aqueles que os encarnam,comopelo contexto em que se encontram.
Entendo, então, que ter possibilidade de se haver consigo mesmo e com o outro, frente a um terceiro neutro, aberto à escuta, traz a chance que a própria modernidade insiste em nos roubar: A chance de escutar, a chance de falar, a chance de dialogar, a chance de se responsabilizar, de não apenas transferir à   justiça o ônus da questão e bradar por direitos, sem mesmo reconhecer deveres e se aperceber como sujeito.  
Muito mais que fazer acordos, é acordar. Dizer do êxito da mediação apenas quando a mesma resulta em acordo é petrificar e restringir seu conceito. Uma reformulação do conflito, dando-lhe novos significantes, estes que adentrarão ao longo da vida dos envolvidos, a desconstrução do conflito como chance de reconstrução da relação, caminho para um processo de decisão, tudo é ganho da mediação.
Em resposta à pergunta-título, ou às propagandas que adentram pela tele (visão) a respeito da mediação, eu resumiria assim, sem pudor ou tecnicismo, com  a liberdade de quem tem daspalavras sagrada visão.
A mediação veio para desafogar a magistratura! Esta seria sua primeira oferta. Injusta posição! Magistrados de plantão! Mês a mês debruçados no risco das “Seleções”! Recordes do listão. Trabalhando processos em mutirão. Labor em exaustão. Afogados estavam na enorme confusão entre demanda e litígio, de brasileiros confusos que desconhecem a diferença entre servir e servidão. Sem se reconhecer cidadãos, quanto mais pretender que saibam o que é justo, injusto, justiça, vingança, lei de talião, deveres e direitos... O acesso à Justiça garantido nem sempre trazia junto a ideia de justiça embutida.  Imbuída desta conquista, mais um passo para a mediação.
A cronologia foi outra mercadoria. Apontaram a mediação como vantajosa por não ser vagarosa. Ironia! Penso que ela nem se atémà cronologia comercial e processual, ela é voltada para o pessoal. Busca nos sentidos o resgate do que de fato é consensual. Enfim e por fim, para além de tudo isso a grande revelação que é reconhecer a narrativa, dando chance ao sujeito de conectar-se com o que lhe é próprio:  lembrá-lo do direito/dever de legislar sua vida, seus erros, acertos e  decisões. Este é, no meu entender, o grande “para quê” da medi(ação).
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¹ http://www.dicionariodoaurelio.com/acessado em 25 de janeiro 2012 às 19: 41
² aram,Maria Elena-“Hacia la Mediaciòn Penal”,Revista La Ley, Suplemento De Resoluciòn de Conflictos,20/03/2000, Pag -1
³ Freud,S(1930), Obras Completas Ed Standard Brasileira, “O mal-estar na Civilização”. Rio de janeiro,Imago Editora .Pg - 1

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